Uma nova perspectiva sobre os experimentos políticos da América hispânica

Em “Repúblicas do Novo Mundo”, a historiadora Hilda Sabato explica como diversas nações recém-emancipadas, cada uma de seu jeito, optaram pelo republicanismo

Em Edusp

Por Divulgação

Durante o século XIX, a maior parte dos territórios controlados pelo Império espanhol na América do Sul conquistou sua independência. Em diferentes contextos, situações e condições, aquelas nações recém-emancipadas se viram em busca de sistemas políticos para exercer sua soberania, e todas elas, de forma autônoma, optaram pelo republicanismo.

A análise desse fenômeno, feita pela historiadora Hilda Sabato, deu origem ao livro “Repúblicas do Novo Mundo: O Experimento Político Latino-americano do Século XIX”, cuja primeira versão em português foi publicada pela Edusp em 2025. Apesar de ter partido da análise da história política de sua terra natal, a Argentina, a autora percebeu que os países criados ao longo do século XIX na América Latina tinham características republicanas em comum.

Cada nação teve particularidades tanto antes quanto depois da decisão de se tornar uma República, o que resultou em uma grande variedade de experimentos políticos. Por algum tempo, o campo da historiografia considerou essas novas Repúblicas como testes malsucedidos na busca por autonomia política, mas os estudos realizados na própria América Latina trouxeram novas perspectivas, revelando uma região na vanguarda do republicanismo ocidental. É nesse contexto que Hilda Sabato se insere, trazendo sua contribuição para o debate.

Quando se iniciou o projeto de “Repúblicas do Novo Mundo”?

Hilda Sabato: O livro é o resultado de uma combinação de fatores, que vão desde as mudanças mais gerais da historiografia das últimas quatro a cinco décadas até o desenvolvimento institucional e profissional dos estudos históricos na América Latina, envolvendo também as idas e vindas de minha própria trajetória na pesquisa. Em matéria de historiografia, destacam-se o impulso e a renovação da história política, que, junto com a história intelectual, se converteu em um dos ramos mais dinâmicos da virada do século. Em vários países de nossa região, essa tendência se viu potencializada pelo incentivo à pesquisa, que levou a uma expansão notável da produção historiográfica e à circulação de novas visões e interpretações sobre o passado. Em meu caso particular, fui parte desse movimento de mudança desde a década de 1980. Minha formação inicial foi fortemente marcada pela história estrutural dominante nas décadas anteriores, já que minhas primeiras pesquisas passaram pela história social e econômica, em especial pelo período de formação do capitalismo argentino, no século XIX. Porém, desde os anos 1980 aconteceu uma virada em meus interesses na direção do campo da política, que tem me ocupado desde então.

Como surgiu o interesse pelos experimentos políticos da América hispânica no século XIX?

HS: Eu iniciei esse caminho com foco em meu país, com trabalhos dedicados à vida política do século XIX. Nesse terreno, havia uma reformulação das perguntas relacionadas a essa faceta da ação humana, o que implicou importantes novidades tanto em termos temáticos quanto metodológicos. Em sintonia com inquietudes sociais e políticas próprias do fim do século XX, sobretudo na América Latina, determinadas questões passaram a ocupar um lugar central entre as preocupações dos historiadores, como a cidadania, a representação, a participação política, a esfera pública, as formas de processamento dos conflitos, entre outras. Junto com isso, e paralelamente à consolidação da história intelectual, houve avanços na dimensão simbólica da política – discursos, imaginários, representações, rituais etc. Nesse clima historiográfico, concentrei meu trabalho concreto na Argentina, mas desde muito cedo me conectei com a historiografia mais geral e, naturalmente, com a que estava aflorando na região, onde se estava produzindo uma verdadeira revolução nas formas de pesquisar e interpretar a política do século XIX. Mencionando apenas o Brasil, personagens como José Murilo de Carvalho, Ilmar Rohloff de Mattos e Marco Pamplona estavam trilhando caminhos semelhantes e figuram entre minhas fontes de inspiração. Assim, foi com o contato assíduo com colegas de toda a América Latina e, sobretudo, com sua renovada produção que fui descobrindo as perguntas que logo formariam a base do livro. Não parti, portanto, de questões sobre a República na América hispânica ou de uma decisão tomada a priori de incorporar a moda da história global; essa perspectiva surgiu do próprio trabalho de pesquisa. Ao explorar a bibliografia sobre os distintos casos referentes aos temas que surgiam enquanto analisava a Argentina, fui encontrando questões e processos compartilhados, que remetiam à decisão comum dessas Colônias de pender para a República, decisão essa adotada durante as guerras de independência contra o Império espanhol. Então, eu me dei conta de que estava diante de uma história muito disruptiva: a opção por formas republicanas de governo não foi um resultado “natural” nem “inevitável” da ruptura com a metrópole, mas sim um passo na contramão das tendências da época, sendo revolucionário no contexto do mundo pós-Congresso de Viena. O tema me prendeu e foi então que decidi pensar a questão da República considerando a América hispânica em conjunto. Parti da riquíssima historiografia já existente não para comparar caso a caso, mas para tentar dar sentido à experiência republicana de toda a região. E o resultado foi esse livro.

Faltavam estudos acadêmicos sobre esse fenômeno político?

HS: Hoje não faltam estudos sobre as transformações políticas do século XIX nem sobre a questão da República e do republicanismo na América Latina. Ainda que a situação seja desigual, variando de país para país, temos uma vibrante bibliografia sobre a maior parte das Repúblicas que se formaram naquele período. Meu livro se nutriu dessa produção, e sua contribuição não consistiu em deter-se em cada um dos casos, mas sim em transcender os exemplos específicos para pensar em conjunto o processo da América hispânica e estudá-lo em relação ao que se passava nesse sentido em outras latitudes. Claro que isso significou privilegiar as características e os desenvolvimentos comuns em detrimento das peculiaridades, mas, ao mesmo tempo, essa escolha me permitiu propor uma interpretação da formação e transformação das Repúblicas em uma região do mundo que, até pouco tempo atrás, havia ficado de fora das versões mais difundidas sobre as Revoluções Atlânticas e a modernização da vida política no Ocidente.

Como foi o processo de escrever o livro em inglês e traduzi-lo para o castelhano?

HS: Escrevi o livro em inglês não só por razões relacionadas à oportunidade. Eu havia apresentado ensaios curtos sobre o tema em várias reuniões acadêmicas, às vezes em inglês e às vezes em castelhano, porque me interessava trocar ideias sobre uma história que me prendia cada vez mais. Em uma dessas ocasiões – em 2012, como pesquisadora do Davis Center, da Universidade de Princeton –, colegas da instituição indicaram meus textos para a editora da universidade e, por causa dessa recomendação, logo chegou o convite de uma de suas diretoras, Brigitta van Rheinberg, para formular um projeto de livro com base nesse material. Não obstante minhas dúvidas quanto a essa ideia, finalmente decidi seguir adiante; preparei uma proposta, que foi aceita, e embarquei na escrita do livro, que evidentemente deveria ser em inglês. Até aqui, tratou-se de oportunidade. Mas há algo mais: interessava-me que a discussão renovada sobre a política no século XIX, que já existia há muitas décadas na América Latina, chegasse a um público de fora da região, que em geral havia ignorado essa parte do mundo em seus debates e interpretações sobre a República e suas variações. Para isso, era fundamental que o livro fosse publicado em inglês. Naturalmente, eu também queria lançar o livro em castelhano, por isso parti para a tradução por conta própria, em uma versão publicada pela editora Taurus (em Buenos Aires, Lima e Santiago). Não foi uma tarefa fácil, pois inicialmente concebi o texto em inglês, o que envolveu decisões de apresentação e estilo que não seriam tomadas em minha língua materna. Mesmo assim, decidi manter a estrutura original e me ajustar para realizar uma tradução sem mudanças substanciais, que segue a mesma ordem de exposição e argumentação e que agora também foi adaptada para o português.

Existiram razões específicas para a adoção do republicanismo em tantas nações latino-americanas?

HS: Antes de mais nada, eu gostaria de esclarecer que o livro não trata do republicanismo como corpo doutrinário, tampouco da tradição republicana em termos ideológicos. Nesse sentido, o republicanismo, em suas diferentes versões, foi uma das diversas constelações de ideias que circularam na América Latina ao longo de todo o século XIX e que alimentaram os processos de mudança política. O foco de minha proposta de estudo está na República, ou seja, na adoção de formas republicanas de governo baseadas na soberania popular para fundar as novas comunidades políticas surgidas após o colapso da ordem imperial. Não havia um modelo único de República nem receitas predeterminadas que orientassem esses processos, o que converteu a região em um espaço de experimentação política formidável. Naquela época – primeiras décadas do século XIX –, a República como forma de governo não tinha “boa imagem” no mundo. A maior parte das experiências europeias nesse sentido havia fracassado e apenas os Estados Unidos se mantinham fiéis à República. Surpreende, por isso, sua rápida e quase generalizada adoção na América hispânica, em um gesto radical para a época. Mas não se chegou a esse ponto sem conflitos. Embora apenas no México a decisão sobre a independência e o autogoverno tenha desembocado em uma saída monarquista (ainda que de vida breve), houve disputas muito agudas em vários locais da região entre aqueles que pendiam para a República e aqueles que preferiam uma saída “monarquista moderada”, isto é, de tipo constitucional. O triunfo dos primeiros não se deu, portanto, de maneira automática, acarretando, ao contrário, fortes enfrentamentos políticos que só se resolveram na década de 1820, com a derrota dos monarquistas. Desde então, as novas comunidades políticas surgidas do colapso imperial foram se organizando com base em princípios, valores e normas de verniz republicano, com diversas variações. Meu propósito com esse livro foi, então, explorar essa história diversa, desde seus começos até as décadas finais do turbulento século XIX.

Como se relacionam entre si a escolha das formas de soberania nacional e a definição de fronteiras territoriais?

HS: A queda do Império espanhol implodiu o ordenamento territorial colonial na América. Uma a uma, foram se desarmando as instituições que sustentavam a organização do território no vasto continente americano. Claro que essas estruturas deixaram suas marcas, mas o que se seguiu foi um processo muito conflituoso de construção de novas comunidades políticas, cujos alcances e limites estiveram em disputa por décadas. Em termos territoriais, o mapa americano sofreu fortes mudanças, e só no final do século XIX se foram definindo os contornos dos Estados-nação que conhecemos hoje.

Houve, em algum outro lugar no mundo, algo semelhante ao ecletismo e à variedade dos experimentos republicanos na América hispânica?

HS: O experimento republicano na América hispânica continental foi inédito, tanto por sua escala e diversidade territorial (maior mesmo em comparação com os Estados Unidos) quanto pela insistência em sustentar a República até em momentos de grande fragilidade institucional e incerteza política. A diferença entre a maior parte dos regimes republicanos tentados na Europa entre o final do século XVIII e o último terço do XIX, que tiveram vida curta e foram substituídos repetidas vezes por outros sistemas de organização política, e os daqui é que estes se mantiveram durante todo o século XIX, perdurando até os nossos dias. O ecletismo em seus formatos e práticas, a diversidade de modelos institucionais tentados e a experimentação contínua no aspecto político, que operava por tentativa e erro, sem fórmulas fixas, seguramente favoreceram a persistência na República. Mas nunca saberemos o que teria acontecido se outros rumos tivessem sido tomados.

A que você credita a noção comum de que esse período da América Latina foi marcado pela ausência de instituições e leis?

HS: A experimentação política foi um traço distintivo na formação das novas comunidades políticas que foram sendo estabelecidas na América hispânica sob o signo republicano. Instabilidade e incerteza foram traços constantes dessa história, que se provou muito conflituosa em boa parte do século XIX. Os contemporâneos já eram muito críticos a essa situação, buscando “domesticá-la”, ainda que tenham sido eles mesmos os arquitetos desse experimento tão difícil de controlar. Os analistas de períodos posteriores, por sua vez, quiseram encontrar ali as raízes definitivas dos problemas que a América Latina experimentou no século XX, e, de maneira um tanto anacrônica, vincularam ao passado fenômenos próprios de sua época, para atribuí-los às falhas do processo de organização nacional, que não havia sido capaz de superar a herança colonial espanhola nem de adotar as instituições e práticas da modernidade. Com essa matriz interpretativa, o século XIX foi considerado um período frustrado, apenas uma etapa de transição entre o antigo regime e o novo, que só surgiria no século XX. Essa visão tem sido objeto de fortes críticas nas últimas décadas, quando o século XIX começou a ser examinado em seus próprios termos. No caso do meu livro, busquei analisar as transformações políticas que resultaram da adoção de formas republicanas de governo. Nesse âmbito, postulo que a incerteza e a instabilidade são traços característicos das Repúblicas desse período, tanto aqui quanto no resto do mundo, e que, portanto, não são o resultado de uma falha no caminho para a modernidade política, e sim uma maneira de inserção nessa história. O que marcou a experiência republicana hispano-americana não foi a falta de leis e de instituições, mas uma contínua experimentação nesse campo, que teve resultados variáveis e muitas vezes contraditórios, porém não menos “modernos” por isso.

 

 

 

 

 

 

 

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