O diálogo a partir do antagonismo na relação entre Mário de Andrade e Murilo Rubião

Como a correspondência entre escritores tão diferentes contribuiu para o desenvolvimento intelectual de ambos

Em Edusp

Por Divulgação

Mário de Andrade e Murilo Rubião tiveram seus caminhos cruzados em momentos pessoais muito distintos. Rubião, ainda jovem, era redator da “Folha de Minas” quando entrevistou Andrade, já um escritor consagrado na ocasião.

A postura de Murilo nessa fase inicial da relação se reflete nas fotografias presentes no nono volume da coleção “Correspondência de Mário de Andrade”: uma figura de fundo, pouco confiante, e com grande admiração por Mário de Andrade.

De forma semelhante, o doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) Marcos Antonio de Moraes e o doutor em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Cleber Araújo Cabral se conheceram em momentos distintos de suas carreiras: Moraes já uma referência na área, com diversos trabalhos publicados sobre as correspondências de Mário de Andrade, e Cabral iniciando sua tese de doutorado, fascinado pelos arquivos deixados por Murilo Rubião.

Graças à conversa entre essas experiências distintas, o que começou como uma tese se tornou um livro, nascendo assim a “Correspondência Mário de Andrade & Murilo Rubião”.

O que despertou o interesse de vocês em trabalhar com as cartas de Mário de Andrade?

Marcos de Moraes: As cartas de Mário de Andrade sempre estiveram associadas ao meu percurso acadêmico, desde o meu trabalho como estagiário no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), na equipe coordenada pela professora Telê Ancona Lopez. Mário definiu em uma carta-testamento, em 1944, que a correspondência que reuniu ao longo de sua vida deveria permanecer fechada por cinquenta anos. Mário morreu em fevereiro de 1945. Em 1968, o acervo do Mário (arquivo, biblioteca, coleção de artes) foi comprado pela USP e as cartas vieram também, e ficaram lacradas em um cofre, até que se completassem os cinquenta anos da morte do escritor. Quando se aproximava a data final da interdição, Telê organizou uma equipe composta de graduandos, mestrandos e doutorandos para trabalhar com essa documentação. Eu, graduando em letras, colaborei para a organização arquivística da correspondência, mais de 7 mil itens! Quando o trabalho foi concluído, Telê teve a ideia de divulgar essa documentação em livros, em uma coleção. O projeto tornou-se realidade pela parceria da Edusp com o IEB, estimulada pelos professores Sergio Miceli e Plinio Martins Filho. O primeiro volume da coleção, “Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira”, de 2000, resultante de meu mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, traz uma das correspondências mais extensas e substanciosas do conjunto. Antes disso, em 1995, eu havia publicado “Mário e o Pirotécnico Aprendiz”, coligindo parcela da correspondência trocada entre o modernista de São Paulo e o escritor mineiro Murilo Rubião. Murilo doou ao IEB cópias das cartas que recebeu de Mário de Andrade, as quais publiquei naquela ocasião, somadas a algumas missivas de Murilo, que Mário preservou com os contos que dele recebera. Muito da minha atuação na USP está ligado ao estudo da epistolografia mariodeandradiana: mestrado, doutorado, livre-docência, minhas aulas, palestras. Vejo o delinear de um projeto de formação de pesquisadores para o trabalho de edição e de estudo de cartas.

Cleber Cabral: O meu contato com a correspondência do Mário começa no Acervo de Escritores Mineiros, onde ingressei como bolsista de iniciação científica, com o professor Reinaldo Marques, ao organizar o acervo de Otávio Dias Leite, poeta cujas cartas a Mário Marcos também organizou em um volume: “Mário, Otávio”, de 2006. A partir desse primeiro contato com a correspondência de Mário com o escritor mineiro, foram aparecendo também os volumes de cartas entre o Mário e outros escritores, e um deles foi esse publicado em 1995, com Murilo Rubião. Nesse primeiro momento, eu não sabia que o Mário de Andrade tinha escrito tantas cartas e fui percebendo quão relevantes elas poderiam ser não só para a história da literatura como para a historiografia da crítica e da teoria literária brasileira. Quando fiz meu mestrado, que foi sobre o Murilo Rubião, essas cartas foram importantes para me auxiliar a entender como o Murilo pensava a criação literária. As cartas eram um espaço no qual ele teorizava sobre literatura, algo que você não encontra em outros materiais. As cartas apresentam essa tentação do acesso aos bastidores. Então, durante o mestrado eu pensei: quem escreveu sobre a correspondência do Murilo? Fiz uma consulta ao IEB, porque percebi que várias cartas não haviam entrado na edição de 1995 por conta do lacre de cinquenta anos. Depois, enviei uma solicitação ao IEB para ter acesso a essas cartas. Na ocasião, entrei em contato com o Marcos, que logo veio à UFMG para uma pesquisa. Da nossa conversa nasceu não só a minha tese como também o projeto da obra “Correspondência Mário de Andrade & Murilo Rubião”.

Nota-se que uma nova edição seria necessária com o fim do sigilo das cartas; o que mais vocês fizeram para que essa nova edição fosse mais completa do que a que já havia sido publicada?

CC: Essa edição nasce junto com a tese, era o meu primeiro ano de doutorado. Nesse momento, estávamos em um novo contexto de pesquisa, o arquivo do Murilo já apresentava mais possibilidades, com documentação ainda inexplorada. Localizamos revistas, como a “Tentativa”, recortes jornalísticos, iconografia etc. Assim, além de novas cartas, agora com um total de 21 (na edição de 1995 eram 13), o livro traz entrevistas e depoimentos de Murilo, assim como fotografias pouco conhecidas. As entrevistas representaram um dos poucos espaços em que o Murilo se dá a conhecer ou se encena. O livro mostra as várias facetas do jovem Murilo Rubião, um dos elementos mais interessantes do volume.

MM: O trabalho com arquivos é sempre repleto de possibilidades. Espaço de descobertas. As conexões entre os arquivos de Mário e de Murilo permitiram uma edição abrangente. As cartas no livro são um fio condutor e em torno delas existe um arquivo que conta a história da correspondência. O que se dá nesse momento, a meu ver, é o encontro de dois pesquisadores entusiasmados que atuam em diferentes arquivos, resultando em um bonito trabalho colaborativo.

Mário de Andrade a princípio estranha a forma como os escritores mineiros trabalham. No livro, ele menciona ser uma escrita “individualista”. O que faz que Mário tenha essa visão?

MM: Recupero o contexto: Mário recebeu pelo menos 7 mil cartas; nessas cartas, há uma enorme quantidade de interlocutores. Alguns são de sua geração, como Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Oswald de Andrade e muitos mais. Outros são escritores(as) e artistas mais jovens que Mário acompanhava com interesse, devotando-se a eles. Percebemos nessa teia epistolar o reflexo da fervilhante sociabilidade modernista. Os jovens mandavam poemas, contos, romances e buscavam a opinião do escritor mais velho. Os diálogos ensejavam um trabalho de formação. No meu entendimento, uma pedagogia áspera. Mário busca construir uma discussão de igual para igual, mas se mostrando sempre muito exigente em suas críticas. Nessas correspondências, em certo momento, Mário busca questionar, em profundidade, a atuação/criação de seu jovem interlocutor, tensionando o diálogo para que o correspondente atinja a autonomia. Desenvolvi essa ideia em minha obra “Orgulho de Jamais Aconselhar” (Edusp, 2007). Murilo é um caso bem particular, porque já não era tão jovem assim quando iniciou a correspondência com Mário. E havia uma complicação no modo como o modernista compreendia (ou não compreendia) os contos do criador de “O Pirotécnico Zacarias”.

CC: Essa questão do individualismo mineiro pode ser lida de diversas maneiras. Esses autores eram individualmente muito diferentes, tinham estilos distintos e propostas estéticas distintas, mesmo que bebessem do modernismo. O que Mário chama de individualismo é o fato de que eles não tinham um projeto coletivo, uma responsabilidade intelectual com caráter de intervenção coletiva. Nesse sentido, Mário os via como escritores menos comprometidos com o questionamento da realidade social brasileira, o que para ele era um compromisso do intelectual.

MM: Estamos no tempo da Segunda Guerra Mundial, no qual os intelectuais se posicionavam de modo mais engajado em termos políticos.

CC: E em um momento em que o Mário passa a ser muito crítico com relação à herança modernista, às supostas facilidades proporcionadas pelo modernismo. O que Mário faz, quando fala do “fracassismo” da geração do Murilo Rubião, é um convite à autocrítica. É possível perceber na correspondência essa mudança de tom, de postura em relação à realidade. Não é à toa que a gente vê um Murilo que assume a presidência da Associação Brasileira de Escritores, em Minas Gerais, atuando para que os escritores tivessem um papel de protagonismo em face das questões sociais de sua época. Essa crítica que o Mário faz é uma cutucada. É esse tensionamento, essa provocação ao diálogo e à ação.

MM: Mário desconfiou muito da produção do Rubião. Para ele, a gente das letras, artistas, músicos devem sempre se posicionar diante da realidade do país. O que o Murilo fazia parecia uma produção inteiramente alheia à nossa realidade. Murilo foi um autor muito original, ele antecipa certos caminhos literários no Brasil, no âmbito do que, depois, seria conhecido como “realismo fantástico” na América Latina. Murilo está tateando o universo do absurdo, que Mário considera inócuo, talvez alienante, em direção a uma arte pura. Para Mário, no campo cultural, nos anos de 1940, “todos são responsáveis”. Quando recebe os contos de Rubião, diz claramente que não os aprecia, porque não os entende. Escreve, paradigmaticamente, em 1944: “Já lhe preveni várias vezes que uma das falhas de minha incapacidade é o gênero de ficção que você faz”. No entanto, Mário tem muitas referências literárias e as apresenta ao Murilo, entre elas Kafka, cuja obra ele acredita se assemelhar ao que o Murilo produz. Descobri que Sartre, também nos anos de 1940, reagiu com desconfiança em face da produção de natureza fantástica de Maurice Blanchot. Mário e Sartre… Pois bem, mesmo não sendo uma literatura de seu agrado, o criador de “Macunaíma” reconhecia a autonomia de seu interlocutor e não tentava convencê-lo a mudar, mas o estimulava a melhorar, a conhecer mais profundamente seus processos de criação.

CC: Já em um momento posterior da correspondência entre os dois, Mário comenta e elogia o conto “Bárbara”. É um conto que tem certa proximidade com o folclore, e é interessante que, logo depois de elogiar o conto, ele tenha escrito: “Mas terei gostado, certo?”

MM: Mário não se coloca na posição do mestre que tudo sabe, mas do mestre que quer aprender.

No livro vocês mencionam que existem alguns momentos diferentes nas cartas trocadas entre os dois; o que define esses momentos?

CC: A gente poderia pensar em pelo menos dois momentos das correspondências. Primeiro esse momento em que a gente vê um jovem Murilo titubeante, com uma postura de idolatria ao Mário de Andrade, postura essa que o Mário já quebra na primeira carta. Se o Murilo chegava de fraque e cartola, Mário estaria de chinelo, bermuda e camiseta regata, por assim dizer. Na forma de tratamento ao início das cartas e nas despedidas, a gente observa como vai se construindo uma proximidade. Mário já manda um abraço, assina somente com um “M”, rejeitando esse tratamento exagerado de Rubião. E, logo nas primeiras trocas entre os dois, Mário cria uma tensão quando fala do fracassismo; isso leva Murilo a fazer uma autodefesa e um trabalho inicial de autocrítica. Um outro Murilo aparece depois de duas vindas do Mário de Andrade a Belo Horizonte, uma em 1939 e outra em 1944, quando eles se encontram pessoalmente. Esse é um outro momento, pois eles já são apenas duas pessoas conversando, não tem mais o mestre e o discípulo. É muito interessante o modo como o Mário pede ajuda para entender a ficção rubiana, como ele auxilia o Murilo com seus contos e como, posteriormente, é o Murilo que vai fazer esse papel para outros jovens escritores. É aquela brincadeira que a gente faz do “Murilo de Andrade”. Murilo Rubião morre em 1991, deixando como legado diversos projetos, iniciativas e instituições culturais que ele criou e auxiliou a desenvolver. Ele tem esse ideal de tornar o erudito acessível à população, que é um aspecto da política cultural desenvolvida pelo Mário de Andrade.

E como era a relação do Murilo com a sua obra? Sei que ele reescrevia muitos de seus textos…

CC: A obra do Rubião quase não avança no sentido do volume. Seu primeiro livro é de 1947, mas são quase sete anos de originais rodando entre editoras. E nesse tempo o livro está sendo reescrito, os contos estão sendo reelaborados, às vezes são suprimidos parágrafos inteiros. Seus livros contavam com novos contos e com contos antigos reescritos, e foi assim até o fim da vida, quando sai o volume “Contos Reunidos”, com 33 narrativas. De modo distinto do que se diz, que ele publicou somente 33 contos, ele reescreveu esses contos obsessivamente e cada conto não era mais o mesmo. A tese do Jorge Schwartz “Murilo Rubião: A Poética do Uroboro”, orientada pelo Antonio Candido, trata justamente desse processo de reescrita. Além disso, é preciso considerar a produção ficcional inédita de Murilo (incluindo novelas inacabadas), além de artigos sobre música, cinema e teatro.

MM: Essa obra é aparentemente magra. Ela está marcada pela angústia da criação literária, pela obsessão da escrita e da reescrita, algo que já aparece na correspondência trocada com Mário.

Qual a importância do estudo e da divulgação da correspondência entre Mário de Andrade e Murilo Rubião?

MM: Essas cartas figuram a possibilidade de diálogos colaborativos, mesmo a partir de antagonismos. Precisamos de diálogos que propiciem escutas atentas, convencimentos, a compreensão mútua das diferenças, a abertura para outras formas de compreender a realidade, que não as nossas. Disso resulta a ação construtiva, que a todos afeta positivamente.

CC: Elas mostram também como esses documentos de arquivo facultam outras possibilidades de leitura dos autores dos documentos, assim como do contexto histórico, das percepções de literatura naquele contexto, percepções antagônicas, como o Marcos mencionou. Então, a divulgação desses documentos chama a atenção para a importância do trabalho com arquivos e a relevância de tais documentos para compreender a literatura e seus autores, situados em um contexto histórico específico.

 

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