“Mulheres Moderninstas” analisa protagonismo feminino

Em Edusp

Por Divulgação

A Edusp lança neste dia 3 de maio, às 18 horas, o livro “Mulheres Modernistas: Estratégias de Consagração na Arte Brasileira”, de Ana Paula Cavalcanti Simioni. A obra debate paradigmas da historiografia da arte feminista ao trazer como referência Anita Malfatti e Tarsila do Amaral. O evento será na Livraria Martins Fontes Paulista, na avenida Paulista, 509, no mezanino. 

Em entrevista, Simioni conta como apresenta o trajeto de ambas ao protagonismo no movimento, ainda que tenham sido as vozes de personagens masculinos que dominaram a narrativa na época. A autora mostra como os casos de Tarsila e Anita contrastam com o de Regina Gomide Graz, que trabalhava com decoração de interiores e artes têxteis, atividade considerada “feminina”, e ficou limitada pela literatura acadêmica como esposa e colaboradora do marido, John Graz. 

Ana Paula Cavalcanti Simioni é professora associada da USP e integrante do Institut d´Études Avancés de Nantes (2021-2024). Graduada em ciências sociais pela USP (1994), fez mestrado (1999) e doutorado em sociologia (2004) pela mesma instituição, com doutorado sanduíche na École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris (2002).

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Por quais motivos Tarsila e Anita foram reconhecidas logo de início? 
Ana Paula: A Anita foi a pessoa que trouxe de fato a arte moderna para o Brasil. Ela estudou entre 1910 e 1914 em Berlim, depois foi a Nova York e em 1917 realizou uma exposição em São Paulo, na qual mostrou vários trabalhos nos quais ela incorporou o expressionismo que conheceu na Alemanha e as linguagens de vanguarda nos EUA. Isso faz com que um público que não estava acostumado com essas linguagens as conhecessem. Também, a famosa crítica que Monteiro Lobato faz em 1917 traz uma consciência de modernidade, a partir dessa dissonância, para os meios paulistanos. A Anita tem um papel pioneiro, de introdutora das linguagens modernistas, o que faz com que seja de fato uma figura de liderança, não intelectual, mas de protagonista. No caso da Tarsila, ela não participa da Semana de 22 porque não estava no Brasil, ainda que muita gente diga que foi a musa da Semana de 22. Ela estava em Paris e chegou pouco depois na cena artística. Rapidamente, ela se torna amiga da Anita, que já conhecia de anos antes, e ambas frequentam o famoso grupo dos cinco, que são as duas, Mário (de Andrade), Oswald (de Andrade) e Menotti (Del Picchia). Então, elas duas são figuras de proeminência nesse primeiro modernismo.

Anita Malfatti é considerada a precursora do movimento modernista, mas foi tratada com a devida importância durante a Semana de 22?
AP: Ouvimos como uma semana mais dos homens por aquela foto que virou uma espécie de ícone, na escadaria do (Theatro) Municipal. É uma foto eminentemente masculina. E pelos textos publicados na imprensa, que é algo analisado por outras historiadoras da arte, de que há poucas críticas de arte mulheres e é anacrônico falar de crítica feminista nos anos 20. As falas são masculinas, os textos que saem na imprensa são escritos por homens, aquela fotografia é masculina, então concordo que nesse sentido tem um certo apagamento da construção de uma narrativa sobre a Anita, na qual não ouvimos a voz dela naquele momento. Por outro lado, como expositora, ela participa da semana com o maior conjunto de obras plásticas. Mas se constrói muito a história em cima dessas narrativas, então a fala dela é apagada.

Por que houve uma oscilação no reconhecimento de Tarsila e Anita? O mesmo ocorreu com outros modernistas?
AP: Sim e não. Um livro que cito bastante é “A Semana Sem Fim”, do Frederico Coelho (Editora Casa da Palavra), que trabalha com essa oscilação depois da Semana de 22. Por um lado, existe uma oscilação geral do modernismo paulista depois dos anos 40 em boa parte dessas vanguardas, apesar de a Era Vargas ter consolidado o modernismo, mas tem uma especificidade de gênero somada à oscilação geral por conta das características da Era Vargas. É um momento muito complexo no Brasil. É o ápice da época das cantoras de rádio, então tem um certo protagonismo feminino. Carmen Miranda desponta como um ícone de brasilidade. Existe um discurso bastante forte no período sobre a contribuição das mulheres como mães de crianças saudáveis, uma reativação do culto à maternidade. O segundo ponto é que existe uma ativação bem forte na Revista Cultura e Política, do Estado, de artistas socialmente engajados, ou que trabalhem com pautas que o Estado considerava sociais. Anita e Tarsila eram consideradas na revista como expoentes de um modernismo individualista. Eles usam a Tarsila, e um pouco menos a Anita, como emblema desse individualismo que o varguismo teria superado. Mas existe um ponto claro, que é o de quantas artistas mulheres receberam encomendas no período. Nenhuma, a não ser a Adriana Janacópulos (escultora). Os homens receberam, então acredito que essa oscilação seja atravessada por questões de gênero, ainda que não seja só isso que explique.  

No caso de Regina Gomide Graz, por que ela não teve o mesmo reconhecimento das outras duas citadas?
AP: São duas razões principais. Primeiro, a materialidade, porque ela se dedicou a obras têxteis, decorativas, que são historicamente desvalorizadas na história da arte em geral. Existe uma revisão dos anos 80 para cá, de entender que a arte decorativa faz parte da arte moderna e que é uma contribuição das mulheres para a arte moderna. Mas, tradicionalmente, é vista como menor, aplicada e sujeita ao tempo e à moda. De outro lado, é igualmente importante o fato de a Regina ter abraçado o modernismo internacional. O John Graz, marido dela, em alguns momentos representa bandeirantes, índios, mas ela não faz nos anos 20 a 40 uma obra nacionalista, ou com inclinação a representar a brasilidade. Ela trabalha muito com padrões abstratos ou até com padrões decorativos ligados ao Art Déco francês e suíço. No Brasil, essa comunhão entre a vanguarda e o nacional foi muito valorizada e os artistas que abraçaram um campo mais cosmopolita ficaram um pouco à margem.

Você foi curadora recentemente de uma exposição no Sesc sobre o bordado na arte. No livro, fala que Regina Graz se dedicava à arte têxtil, considerada como uma arte feminina. Essa denominação dificulta o reconhecimento desse tipo de arte em relação à pintura e à escultura, por exemplo?
AP: Arte feminina nunca é um bom rótulo. É como falar em arte amadora. Hoje ninguém mais fala que isso é coisa de mulher, mas falam que é uma obra muito decorativa. Quando se vê alguém falando que essa pintora é muito decorativa, nunca é um elogio. Amadorismo, feminilidade, decorativo, está tudo ligado num campo simbólico de desvalorização em relação ao artista homem genial, único, singular, autoral, antimercado. Quando falamos de arte útil, aplicada, arte decorativa, é quase como se estivéssemos falando dentro de uma perspectiva de crítica cultural a uma arte que está dialogando de maneira muito amigável com o mercado e com o consumo. Para alguns intelectuais e historiadores, a arte é, por definição, a crítica à cultura de massas e ao consumo. Outro ponto é que as mulheres foram muito para as artes decorativas porque aprendiam, em casa, a bordar, decorar, fazer roupas… Muitas delas, como as russas, passaram a fazer obras decorativas porque precisavam vender, por necessidade, mesmo, porque estavam passando fome em Paris e tinham esse repertório. Outras foram contratadas pelos balés russos para fazer figurinos, também de teatro e de ópera, porque era algo que aprendiam e fazia parte da cultura feminina. Outras porque se envolveram em uma perspectiva mais revolucionária, como a (Varvara) Stepanova, de que a moda molda o corpo e é preciso contribuir para a construção do corpo da nova mulher, fazendo uma moda adequada para a mulher que trabalha, que é operária – isso pensando muito nas russas. A Regina Graz não tem essa ousadia toda, mas, certamente, foi influenciada por um clima de época em que as mulheres podiam participar de maneira positiva das vanguardas, por um lado dialogando com uma cultura feminina ligada aos tecidos, aos bordados e à moda, por outro inovando essa cultura feminina, trabalhando com novas linguagens, abstração, revolucionando dentro dos limites do possível uma certa cultura tradicionalmente feminina. Nessa divisão de trabalho dos artistas que juntos fazem projetos decorativos, sempre o têxtil é das mulheres. São muitos casais de artistas em que os homens fazem desenhos, móveis, projetos, e as mulheres o têxtil. Na Bauhaus, que é sobre o que as feministas falam, as mulheres entravam e iam para o ateliê de tecelagem.

Você já disse que Tarsila foi alçada à condição de musa, Anita, à de vítima e Regina foi vista apenas como esposa colaboradora. O que revelam essas alcunhas dadas às artistas? 
AP: Demorei um pouco para chegar a essa afirmação mais forte sobre as três, que sei que é um pouco reducionista, porque nenhuma das três foi só construída assim. Meu problema era entender como foi possível que algumas mulheres artistas, sobretudo a Anita e a Tarsila, tivessem tanta centralidade no modernismo no Brasil. Internacionalmente isso não é normal, com exceção da Rússia, onde as mulheres têm bastante proeminência também. Na França não existem mulheres consideradas chefes de escolas. Na Itália menos ainda, porque o futurismo é super misógino. Espanha, Portugal, Argentina, mesmo no México, porque a Frida (Kahlo) e a María Izquierdo são da década de 30 e vêm um pouco depois do Diego Rivera etc. Esse lugar das mulheres no Brasil é bastante incomum, mesmo que não seja único, com mulheres no centro do modernismo pictórico. Então queria entender como pensar em gênero e sucesso, ou se as mulheres terem essa centralidade fazia com que o gênero não fosse uma categoria útil para a gente. Mas fui entendendo que é e está articulado ao sucesso delas, porque são vistas como “mulheres” de muito sucesso. A Anita foi construída não como alguém que optou por um modernismo mais conservador nos anos 20, mas sim como alguém que optou por aquilo porque foi vitimizada pelo Lobato, como uma reação dela. O Mário de Andrade, que no fundo é quem construiu essa leitura dela, a chamava de sensitiva do Brasil, falava que depois daquela crítica ela havia decaído. Ele não considerou que ela escolheu aquilo ou que era legítimo alguém ter se dirigido para um modernismo mais conservador. A Tarsila é uma coisa impressionante, porque a maior parte dos textos começam falando da beleza dela, depois do casamento bem-sucedido e então iam para a obra. Em vez de ficar me batendo nisso, de por que as pessoas olham para a beleza, achei mais interessante compreender como ela foi construída como musa, e é uma construção da qual ela participa. Não é uma coisa mulher-objeto, mas uma estratégia de algumas mulheres modernistas de se apropriarem de algo que elas sabem que acontece, que é as mulheres serem objeto do olhar masculino. Sobre a Frida Kahlo, por exemplo, alguns textos falam que ela demorava mais de uma hora se arrumando. Ela se montava, no jargão de hoje, para ir para a rua. Ela construiu a persona em cima desse imaginário, como alguém que dialoga com as indígenas ancestrais, porque ela gostava, mas também é uma construção. E a Tarsila se constrói como musa. Não por acaso, nas cartas que o Oswald manda para ela, ele sempre começa ou acaba falando, “compra chapéu e vai bem bonita”. Não é normal. Imagine mandar um telegrama, que era caro e curto, e gastar duas de oito linhas falando para ir comprar roupas? Não é uma anedota, é algo importante. É a construção do casal como um casal cosmopolita, intelectualizado, refinado, com condições de estar na vanguarda francesa e com os franceses. Isso passa pela construção da Tarsila como uma mulher bonita, vestida por um grande costureira da época, colecionadora de arte, então essa construção dela como musa teve a participação dela. No caso da Regina, eu me refiro sobretudo ao modo com que o Pietro Maria Bardi a construiu. A recuperação da Regina no sistema artístico se deve ao Bardi. Foi ele que nos anos 70 colocou a obra dela em circulação, valorizou o casal e o irmão Antonio Gomide, fez exposições e colocou a obra dela à venda para os colecionadores. Nos textos, ele sempre se refere a ela como a esposa do John e como se a grandeza dela estivesse um pouco aí, de ter acompanhado os trabalhos do marido. Na recuperação da Regina, esse lugar dela como esposa do John e irmã do Antonio Gomide é muito forte e acabou obscurecendo qualquer tipo de trajetória individual. Isso é tão impressionante que não se acham fotos dela. Conseguimos a foto dela mais velha, para a capa do livro, em uma matéria de jornal, e é a única foto que conseguimos dela. Não é incrível uma artista não ter deixado fotos, nem na imprensa, nem com a família? 


Sua área de estudos é a sociologia da arte e da cultura, principalmente ligada a arte e gênero. Acredita que a mulher teve mais dificuldade em conquistar espaço no meio artístico, o que depois influenciou a sociedade como um todo?
AP: É interessante pensar nisso porque o mundo social não é homogêneo. Cada área profissional tem regras específicas e isso traz mais ou menos chances para mulheres, negros, indígenas. Por exemplo, quando os cursos superiores são abertos às mulheres já na República, em 1892, já havia no campo da medicina algumas mulheres que cursavam a área de obstetrícia, eram formadas parteiras. Mas, no caso das artes, em 1892 várias mulheres já entraram na Escola Nacional de Belas Artes porque havia demanda. A engenharia abre no mesmo ano, mas o Brasil demora muitos anos para formar a primeira engenheira (em 1917). Acredito que tantas foram para o campo das artes porque sempre foi um campo adequado para as mulheres. Até certo ponto, é bom que a mulher saiba pintar, bordar, escrever, recitar poema e tocar piano, porque é a ideologia da mãe republicana, a mãe virtuosa. Acreditava-se que uma mulher educada poderia educar melhor os filhos, então era interessante que tivessem boas noções de artes, geografia e história. Mas quando ela começa a expor muito, começa a fazer mais sucesso que o marido, quando uma concertista começa a viver de concertos de piano e viajar pelo exterior, aí a coisa sai do esperado. 

O que os leitores podem esperar da sua pesquisa?
AP: A interpretação é sempre livre, mas gostaria de contribuir para pensarmos na especificidade do caso brasileiro, da história das mulheres e das mulheres artistas no Brasil,  mas em diálogo com as teorias feitas fora do Brasil. O tempo todo tento pensar o Brasil comparativamente, do ponto de vista teórico e no histórico, especialmente pensando gênero não como categoria universal, válida para todo mundo, mas como categoria situada. Isso é importante porque estamos em uma época de pautas identitárias com debates à flor da pele. Existem muitos embates sobre a obra negra da Tarsila, que tem sido bastante contestada pelo movimento negro hoje. Porque no autorretrato ela se coloca como branca, como cosmopolita, como linda e, na hora de desfigurar o corpo da mulher, coloca um corpo de uma negra. Hoje é possível fazer essa leitura da obra e não acho errada. Por outro lado, temos de ver que, na época em que foi feita, uma artista mulher figurar uma negra em primeiro plano, como retrato individualizado e recusar o corpo feminino como espetáculo de prazer voyeurístico, dentro de uma perspectiva feminista, é bastante ousado. Agora, é um feminismo que esbarra no limite histórico do Brasil, que é a dificuldade com as memórias da escravidão, que está na própria vida da Tarsila. O importante é não entrar no debate de uma maneira muito simplificada, porque não é. Para quem tem perspectiva mais histórica, é muito complicado fazer isso porque temos sempre de revisitar o passado criticamente, mas não tirar “A Negra” do MAC (Museu de Arte Contemporânea) porque agride a sensibilidade hoje. É uma obra emblemática do modernismo brasileiro e escondê-la não vai resolver nossos problemas. É melhor olhar para a obra, entender o que foi naquele contexto, a intenção da artista, o que significou então e o que significa hoje. Precisamos historicizar as produções e entender que nosso presente é histórico também. Nossa perspectiva também vai passar e não será absoluta.

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