Impressão em missões retrata tensões entre jesuítas e guaranis, diz autora

Jornalista Fernanda Verissimo lança “A Impressão nas Missões Jesuítas do Paraguai: Século XVIII” e adiciona um capítulo à história do livro na América

Em Edusp

Por Divulgação

O trabalho das missões jesuítas não era apenas de catequização, mas também de alfabetização, tradução e impressão de livros que serviam até mesmo como propaganda. É o que a jornalista Fernanda Verissimo mostra no livro “A Impressão nas Missões Jesuítas do Paraguai: Século XVIII”,  lançado em novembro pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), em parceria com as Publicações BBM.

Verissimo, que também é tradutora, fez uma análise bibliográfica comparativa de edições diferentes de uma mesma publicação, colaborando para retratar uma experiência política e religiosa que até hoje causa espanto e curiosidade. Assim, mostra também como os jesuítas mantiveram a tradição ocidental da imprensa mesmo em meio à selva, para contar a história das reduções no Paraguai, seguindo os mesmos moldes daquelas existentes em outros cantos do mundo.

Fernanda Verissimo é jornalista e tradutora, graduada em jornalismo e comunicação social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com mestrado em bibliografia e estudos textuais pela University of Leeds (Inglaterra). Possui duas especializações: em políticas culturais e em história moderna e contemporânea, além de doutorado em história moderna e contemporânea, todos pela Université Paris-Sorbonne (França).

 

Como a análise da produção tipográfica contribui para a compreensão da história?

Fernanda Verissimo: Trabalhei por cinco anos em uma editora pequena no Rio Grande do Sul, nos anos 1990, e tratava de problemas de produção, de compra de papel até paginação. Meu interesse por livros era, até então, realmente mercadológico, técnico. Depois de cinco anos trabalhando com isso, estava meio cansada e achei um curso de mestrado na Inglaterra, sobre história do livro. Na época, não sabia como era, mas queria continuar a estudar o livro, sem essa coisa comercial. Ganhei uma bolsa parcial e descobri essa área que é, em uma escola inglesa de história do livro, muito baseada no livro como objeto, depois de impresso, a partir de Gutenberg (inventor da prensa). Víamos como o formato do livro chegou ao que é, como se criaram os formatos, o que surgiu a partir da impressão. Essa escola inglesa foi criada principalmente para estudar Shakespeare, para descobrir como as questões técnicas influenciaram no conteúdo, se havia erros em alguns livros impressos na época que não eram erros do autor, mas da impressão. Era uma preocupação com os detalhes. Parecia uma coisa de seita, esotérica, comparar uma página de um exemplar com a página de outro, para tentar achar um erro que influenciou na história daquele livro específico, muitas vezes discutindo frases específicas que mudaram de sentido por um erro do editor, e não de Shakespeare. Fiz o mestrado sobre um impressor do século XVI, na Inglaterra. Voltei ao Brasil e, conversando com José Mindlin, ele me mostrou na biblioteca dele um livro impresso nas missões e um manuscrito. Ele me sugeriu como tema para o doutorado, porque eu queria continuar a estudar, mas não sabia de impressões no Brasil da mesma época que estudei na Inglaterra. Estava para morar na França, apresentei o projeto e foi aprovado. O essencial para mim foi que eu já sabia dos jesuítas e das missões deles no mundo inteiro, mas não sabia da importância que eles davam à impressão. Não era a única ordem que fazia isso, mas eles chegaram com uma intuição propagandística muito forte. Em qualquer lugar eles faziam gramáticas, vocabulários da língua, para ensinar os missionários para que pudessem partir pelo mundo, falando as línguas dos nativos. Então cheguei à importância que davam à impressão de cada exemplar de um livro e, depois, à importância dos detalhes gráficos. Era uma maneira, mesmo que estivessem imprimindo um livro no meio da selva, de fazer isso dentro dessa tradição da impressão ocidental, nos mínimos detalhes. Sumário, página de rosto, subtítulos, paginação, que são detalhes estéticos, e eram tiragens pequenas nas missões paraguaias. Esses detalhes eram mais usados na impressão contemporânea europeia para ajudar o impressor, porque a tiragem era muito grande e era uma maneira de saber se estava imprimindo a página certa. Talvez não se precisasse disso no tipo de impressão que era feita nas missões, porque eram poucos exemplares. Era se colocar dentro de uma estética ocidental cristã, incluir um livro pequenininho, feito em uma prensa precária, no meio do nada, mas que fez parte daquela missão. Era feito com o mesmo cuidado dedicado aos livros das escolas e colégios europeus.

Por que o interesse nas missões jesuítas do Paraguai?

FV: É uma parte importante da história do Rio Grande do Sul, da formação do estado e das fronteiras, que ainda é uma coisa muito romantizada. Até pouco tempo atrás, nem mesmo se considerava o trabalho dos indígenas, dos guaranis, nas missões. Falavam apenas das missões dos jesuítas. Isso mudou muito porque ficou claro que os guaranis participavam ativamente da administração e eram importantes, porque havia redução com cinco padres e mil guaranis, que não precisariam ficar ali se não quisessem. E tem também a questão de que as fronteiras são um tema forte no Rio Grande do Sul. Mas a verdade é que foi um pouco por acaso, uni essas duas coisas a um interesse anterior, o interesse que descobri pela história do livro, e à conversa com o doutor José Mindlin quando procurava um tema para continuar o estudo. Foi quando me dei conta de que, apesar de conhecer um pouco sobre as missões, eu não tinha ideia de que havia prensas nem de que havia um indígena escritor com nome impresso. Isso é uma coisa muito específica, porque nem mesmo os jesuítas imprimiam seus nomes nos livros. Era uma missão com caráter coletivo, e não individual. O indígena ter o nome dele impresso é simbólico também para dar autenticidade ao livro. Principalmente em vocabulários e catecismos em guarani, porque mostra a assinatura de um guarani, que fala guarani, então certamente estão corretos. Os jesuítas não tinham grande confiança no intelecto dos guaranis, diziam que eram imitadores, que reagiam de forma mecânica, mas não há dúvida de que, nesse caso, usaram o fato de se tratar de um cacique guarani como prova de veracidade.

Como o desafio de analisar essa relação de catequização de uma população com língua própria e tradição oral difere, por exemplo, do tipo de análise de publicações que você fez durante seus estudos na Inglaterra?

FV: Achei que dava para aplicar às prensas jesuítas as técnicas que aprendi no mestrado, embora tenha dado mais trabalho, porque não falo guarani, muito menos guarani jesuíta, que é bem específico. Tem quem fale, porque usei muito o trabalho de um padre jesuíta paraguaio que é especialista em guarani das missões, que é completamente diferente do guarani que se fala hoje no Paraguai. Então me baseei muito, em termos de conteúdo, nessas pessoas que já tinham trabalhos publicados. Mas, no trabalho físico de comparação dos exemplares, se era em guarani, eu comparava sinais, para dizer a verdade. Porque não diziam nada para mim, a não ser quando aparecia uma palavra em latim ou em espanhol. Foi mais trabalhoso do que minha atividade na Inglaterra. A parte original da tese é superespecífica, comparando página a página.

Existe um ditado segundo o qual a história é escrita pelos vencedores; você pode explicar como identificou as tensões entre as populações indígenas e os missionários com sua pesquisa?

FV: Pelo tipo de literatura, digamos assim, não dá para enxergar essa tensão, porque são catecismos, gramáticas, livros e temas dirigidos. Mas tem também um vocabulário com exemplos de frases em guarani para serem usadas em que aparece: “quando se ouve um português, pega-se na lança”, ou algo assim. Então, isso mostra essa tensão entre colônias, com os guaranis tomando o partido dos espanhóis contra os portugueses. É uma frase agressiva, e não sei de exemplos em que se falasse mal dos espanhóis ou dos jesuítas. Há apenas quando os guaranis usam a escrita, mas não a impressão, para tentar tomar o controle do próprio destino, o que acabou em um massacre. Os guaranis decidiram se opor ao Tratado de Madri, que faria com que deixassem as reduções no lado espanhol para serem entregues aos portugueses. Eles teriam que ir embora e grande parte dos caciques decidiu lutar, então começaram a escrever bilhetes e a usar a escrita como ferramenta de guerra, à revelia da Companhia de Jesus, ainda que alguns jesuítas tenham se colocado ao lado dos guaranis. Mas não foi um uso de impressão.

Você diz que os guaranis têm uma tradição de oralidade. Essa alfabetização que os jesuítas empreenderam contribuiu de alguma forma para que os guaranis registrassem a própria história?

FV: Quando as missões acabaram, as populações indígenas entraram nas novas nações, dentro das novas fronteiras. Há casos de guaranis que escreveram um pouco da história das missões, mas não de forma impressa, que eu saiba. Uma das coisas melancólicas da história das reduções é que aqueles 150 anos acabam ali. Tanto que acho que só 200 anos depois foi impresso algum livro em guarani outra vez. Essas populações se juntaram a outros grupos, as lutas nas reduções ficaram abandonadas e essas pessoas foram tragadas pelos países que foram se criando por ali. Também temos que lembrar que os guaranis que se juntaram às missões não eram de uma origem só. Foram reunidos vindos de diferentes comunidades e, quando as missões se dispersaram, eles não mantiveram aquela unidade como guaranis jesuítas ou guaranis das missões. Então, seria uma visão um pouco romântica a de que as missões teriam aberto um caminho para que os guaranis contassem a história deles. Não vejo isso, infelizmente, porque é como se tudo tivesse evaporado 150 anos depois. Só sobraram ruínas, literalmente.

Há algo que você gostaria de falar e não foi perguntado?

FV: É um mundinho pequeno que estuda esse tipo de coisa especificamente, mas minha esperança com este livro é que os poucos “loucos” que trabalham com isso possam aumentá-lo. Porque essas tabelas que fiz se basearam em livros aos quais tive acesso, e existem outros. Alguns consegui ver on-line, outros não consegui, porque eu não tinha bolsa, o que também fez com que meu livro demorasse a sair. Era preciso ir até as bibliotecas quando não havia um exemplar digitalizado. Então, fiz o livro com o que consegui ter em mãos e a ideia é que fosse aumentado. Tinha encontrado uma lista de localização dos livros, de uma estudiosa paraguaia, e trabalhei em cima dessa lista, porque estão espalhados pelo mundo todo. Nada disso está terminado. Por exemplo, descobri nestes últimos meses outro exemplar, com um colecionador inglês, mas não deu tempo de incluí-lo. Assim como esse, deve haver outros. Apesar de ser uma coisa tão específica, tem várias curiosidades que acho importantes. Embora não se trate de impressão no Brasil, é preciso pesquisar a impressão no Brasil. As missões no Paraguai fizeram a segunda impressão da América do Sul, depois somente de uma em Lima (Peru). Então, tem esse conceito de que isso “empurra” a impressão brasileira, com muitas aspas. O próprio uso como prova do “trabalho civilizatório”, também entre várias aspas, dos jesuítas é importante. É um detalhe que simboliza o que queriam para as reduções, a imagem que queriam passar. Essa ideia de ter tipógrafos, ter escritores, da inserção nesse mundo cristão ocidental, essa coisa simbólica é superimportante, apesar de ser um ofício tão pequeno e de curta duração. É impressionante tecnicamente, porque fazer uma prensa não é muito difícil, mas as fontes, os caracteres, a tradução… Alguns livros, como “Diferença entre o Temporal e Eterno”, que é um clássico jesuíta, foram traduzidos para o guarani, então é um ofício pequeno que é símbolo de algo mais amplo.

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