Eunice Ostrensky, estudiosa de Quentin Skinner, reflete sobre “Visões da Política” e o legado do autor
Na obra, Skinner estuda o contexto histórico em que intelectuais como Hobbes e Maquiavel desenvolveram suas reflexões
Em Edusp
Por Divulgação
O inglês Quentin Skinner tem uma carreira longa e de grande renome na história da teoria política, sendo reconhecido como um dos fundadores da Escola de Cambridge e criador de sua própria metodologia de estudos. A recente publicação de “Visões da Política: Virtudes da Renascença” em português representa uma valiosa amostra de sua vasta obra, analisando a virtude cívica e a liberdade na Renascença.
Nos textos que compõem o livro, é possível entender melhor a aplicação de seu método para o estudo de diversos autores, desde os filósofos Thomas Hobbes e Maquiavel até o pintor Ambrogio Lorenzetti. Esse e outros aspectos do trabalho de Skinner são apresentados, no início do livro, por Eunice Ostrensky, que tem longa experiência com o trabalho do autor.
Além de escrever a apresentação de “Visões da Política”, Eunice coordenou a tradução da obra – composta de três volumes, sendo apenas o segundo publicado pela Edusp – para o português. Valendo-se de seu papel notável na elaboração da edição, a estudiosa oferece, em sua entrevista para a Edusp, percepções importantes sobre a carreira de Quentin Skinner e a teoria política como um todo.
Como aconteceu o contato com o trabalho de Quentin Skinner na sua trajetória acadêmica?
Eunice Ostrensky: Fiz graduação em filosofia na USP, estudando filosofia política, em especial pensamento político inglês. O primeiro livro que eu conheci de Skinner foi “As Fundações do Pensamento Político Moderno”, no final da graduação. Foi um livro que abriu a minha cabeça, um divisor de águas na minha pesquisa. Depois fiz mestrado em filosofia e estudei o livro “Behemoth”, de Thomas Hobbes, que é sobre a história das guerras civis na Inglaterra. No doutorado, continuei estudando os interlocutores, como Hobbes, e me aprofundei tanto nos discursos dos monarquistas quanto nos dos parlamentaristas durante as guerras civis inglesas. Foi durante o doutorado que tive a oportunidade de conhecer Skinner pessoalmente, em 2000 ou 2001. Fui visitá-lo e passamos horas conversando. Ele foi muito prestativo, muito gentil, me deu uma série de orientações de bibliografia e ajudou a refinar a minha pesquisa. A partir daí, comecei a explorar as propostas metodológicas de Skinner, passei a utilizar nas minhas pesquisas o método que ele apresenta em “Visions of Politics: Regarding Method”. Embora eu tenha abandonado um pouco o estudo do século XVII inglês, permaneci muito vinculada a essa perspectiva metodológica. As minhas publicações seguem o método dele e o método mais amplo, chamado Escola de Cambridge.
No que consiste a metodologia de Skinner?
EO: Skinner começa a desenvolver esse método no final da década de 1960. Naquele contexto, vários pensadores decretam o fim da filosofia política. Era a ideia de que não havia mais nada a dizer, seria uma repetição de ideias paradas no tempo que não tinham mais relevância para o entendimento das obras. Skinner faz parte de uma tentativa de mostrar que essa abordagem que vigorava até os anos 1960, e acho que ainda está presente, era historicamente equivocada. A abordagem de Skinner é uma abordagem histórica, mas não é qualquer tipo de historicismo. De certo modo, ele também é um crítico do historicismo, na medida em que se distancia em vários aspectos do marxismo, que vê as ideias como um efeito das relações materiais. A abordagem de Skinner não ignora a existência dessa relação de causalidade, mas ela não é tão determinante quanto é para os marxistas. E, mais do que isso, as ideias podem modificar o contexto, elas não são apenas geradas. Mesmo a perspectiva contextualista de Skinner pode ser mais bem descrita como um contextualismo linguístico, e não um contextualismo histórico. É o contexto dos atos de fala dos autores e autoras, ou seja, a qual conjunto de teses e proposições eles estavam respondendo. Os textos são vistos como respostas colocadas num debate; é por isso que se trata de contextualismo. O que importa para identificar esse contexto são os proferimentos de atos de fala ou discursos, que são enunciados no momento em que o autor está interferindo nesse debate. Diferentemente de uma perspectiva inteiramente filosófica e abstrata, Skinner recupera textos de autores menores que hoje não são lidos mais, como panfletistas e participantes de debates parlamentares. Ou seja, ele confere dignidade às fontes primárias que hoje a filosofia trata como menores, mostrando que, na verdade, esses grandes autores que nós vemos estão discutindo com esses menores. Considero que é um método interdisciplinar, porque precisamos ter bom conhecimento dos textos chamados canônicos, mas também abertura para esses textos menores.
Como surgiu o convite para fazer a apresentação dessa edição de “Visões da Política”?
EO: Na verdade, eu recebi o convite para supervisionar a tradução e indicar os tradutores: o professor Luís Alves Falcão, da Universidade Federal Fluminense, que é um grande conhecedor desse período; a professora Verônica Calsoni Lima, que hoje é professora da Universidade Federal do Triângulo Mineiro; o professor Plinio Junqueira Smith, da Universidade Federal de São Paulo; e Sérgio Mendonça Benedito, meu orientando, que traduziu as notas, muito eruditas e trabalhosas. Tive o trabalho de coordenar essa equipe, e o professor Sergio Miceli me pediu que escrevesse uma apresentação sobre a obra de Skinner, em especial sobre “Visões da Política”. Pensei em apresentar a conexão que existe entre as diferentes preocupações de Skinner ao longo do tempo: a preocupação metodológica, a preocupação com a história do pensamento político, que é algo em que ele se destaca muito, e, em terceiro lugar, uma questão normativa em relação ao que ficou conhecido como “republican revival”, que é a ideia de retomar os estudos sobre a liberdade republicana neorromana.
Skinner se propõe o desafio de tentar identificar o que os autores estavam fazendo ao escreverem seus textos. Que tipo de conclusões e resultados ele encontrou nesse processo?
EO: Ele fez isso com diferentes autores. Uma das características de Skinner é uma enorme erudição. Em “Visões da Política: Virtudes da Renascença”, ele vai de textos do século XIII até textos do final do século XVII, são quatro séculos de textos da Inglaterra, da França, dos Países Baixos, da Itália. Não é um método quantitativo, nem mesmo qualitativo. É uma análise de discursos. Então, é algo que exige muita leitura e paciência. Vou dar um exemplo: hoje, uma pessoa que decide estudar Hobbes, ainda que não empregue um método skinneriano, não pode ignorar o debate que Hobbes empreendeu com os outros atores e autores políticos do seu tempo. Ela pode fazer uma opção metodológica de não tratar disso, mas não pode simplesmente dizer que isso é irrelevante. Para poder dizer que isso é irrelevante, ela vai ter que formular outro método. Então, Skinner colocou uma espécie de precaução metodológica. Uma das características do método é que ele não é uma camisa de força. Inclusive, ele admite certo ecletismo metodológico que o próprio Skinner pratica, mas, ao mesmo tempo, isso exige certo cuidado para definir quais afirmações posso atribuir a esse autor. Não posso atribuir ao autor algo que ele não tinha condições de manifestar naquele momento da sua existência. Um exemplo: não posso dizer que Hobbes é defensor de um estado totalitário, porque a ideia de estado totalitário é um produto do século XX. Assim, o método tem como efeito certo cuidado com o tratamento das fontes, uma necessidade de considerar que esses autores estavam falando de questões muito específicas diante de vocabulários conceituais muito precisos. Outro efeito é ampliar a nossa compreensão sobre a ideia dos autores como atores políticos, ou seja, os textos são vistos como intervenções. Então, os autores estão interferindo num debate para modificar os rumos desse debate, porque eles têm ambições e propostas políticas. Skinner diz isto: mesmo a mais abstrata das filosofias está falando de questões concretas, portanto isso é um ganho para quem estuda teoria política. Isso politiza o debate político e evita a permanência na abstração e numa questão só de coerência interna dos textos.
Como você interpreta a relevância duradoura do pensamento e da metodologia de Skinner?
EO: Uma questão muito importante, de certo modo derivada do método, é a questão normativa. Ela é colocada de maneira mais clara num livro que se chama “Liberdade Antes do Liberalismo”. Nesse livro, Skinner traz uma resposta a um pensador liberal muito importante chamado Isaiah Berlin, que escreveu um ensaio chamado “Dois Conceitos de Liberdade: O Romântico e o Liberal”. Skinner responde com esse livro, em que propõe um terceiro conceito de liberdade. Ele discorre um pouco mais sobre esse terceiro conceito de liberdade, que, segundo ele, foi formulado muito antes do surgimento do liberalismo. O conceito de liberdade que ele defende teria sido produzido por teóricos romanos no final da República romana e pode ser sinteticamente exposto como oposição à escravidão. A liberdade consiste em não ser dominado por outros. Então, quando Skinner se voltou para esse terceiro conceito, ele de certo modo abriu uma nova perspectiva sobre o conceito de liberdade, que é um dos principais temas da teoria política contemporânea. Ele não estava participando apenas da construção da história do pensamento político, mas também da teoria política normativa contemporânea. E, para isso, desenvolveu um diálogo muito frutífero com um filósofo irlandês chamado Philip Pettit. Ambos ofereceram uma contribuição gigantesca para o debate sobre a liberdade, que era dominado, de um lado, por uma concepção liberal de liberdade como a não interferência e, de outro, por uma concepção comunitarista de liberdade, que é a liberdade como realização e ação política. Skinner chamou a atenção para uma dimensão da liberdade que tinha sido esquecida, e a tarefa dele é resgatar esse conceito e mostrar como ele tem atravessado diferentes períodos.
Você menciona que Skinner algumas vezes adotou uma postura polemista. Isso foi algo pontual ou atravessou toda a sua carreira acadêmica?
EO: No primeiro texto metodológico de Skinner, chamado “Meaning and Understanding in the History of Ideas” (“Significado e Interpretação na História das Ideias”), ele tem um claro propósito polêmico. Tanto que o texto não foi publicado pelas revistas para as quais ele o mandou; só foi publicado posteriormente, porque ali ele adquiriu uma postura quase iconoclasta. Ele critica veementemente autores que eram considerados consagrados quando era um jovem desconhecido. Digamos que, de lá para cá, muita coisa mudou. Agora ele não é tão incendiário, mas sempre teve uma disposição inacreditável para o debate. Isso porque, de certo modo, ele também está mimetizando aquilo que considera ser o cerne da teoria política: o debate. Misturando uma questão metodológica com uma questão mais normativa, podemos dizer que os conceitos políticos são polêmicos por si sós. Nunca se encontrará uma definição que se estabilize. Outro exemplo disso pode ser o conceito de democracia. Nós temos várias concepções do que é democracia; algumas se tornam mais aceitas, adquirindo certa legitimidade, e outras são deixadas de lado. Essa distinção também é uma questão histórica. Então, Skinner é polemista no sentido de que ele está inserido num debate com os intérpretes e os filósofos e contesta as posições desses autores, mas ao mesmo tempo aceita o debate, a polêmica, e que suas próprias posições sejam contestadas. Ele acaba incorporando algumas das objeções que são feitas a ele. Isso também caracteriza a personalidade de Skinner, que foi combativa na juventude e agora é menos aguerrida nas suas posições.
Quais as diferenças entre analisar um texto de teoria política e analisar obras como os afrescos de Ambrogio Lorenzetti, como Skinner faz no livro?
EO: Quando eu estive com Skinner na Inglaterra, ele disse que houve muitas críticas a esse texto e que, daquela vez, desistiu de entrar no debate. Acontece que muitos outros achados foram feitos desde a época em que Skinner escreveu o texto, e ele precisaria levar em conta esses achados para retomar o assunto. Porém, como ele estava pensando em outras coisas, acabou não estudando o tema. Isso mostra que essa pesquisa também depende de achados históricos. Se fazem a restauração de uma pintura e descobrem que existe um traço que antes não era visível, ou se encontram documentos relativos à produção do afresco, isso provavelmente vai modificar a interpretação. É por isso que esses estudos precisariam ser constantemente atualizados, o que é da natureza da pesquisa científica. Quanto a ler uma pintura, assim como nos textos, há uma sobreposição de elementos. Nos textos, nós temos uma sobreposição de discursos ou linguagens. Você vai escavando essas diferentes camadas temporais de que são compostos os diferentes textos. Se você pegar um texto do século XVII, você vai encontrar, por exemplo, argumentos teológicos, jurídicos, históricos, filosóficos, tudo misturado; é difícil de estudar. É quase um experimento científico separar esses discursos e discernir a forma como eles são formulados – por outras pessoas, em outros contextos. O método ajuda a identificar os diferentes contextos em que essas posições foram produzidas. Então, na época dos afrescos de Lorenzetti, a discussão sobre o bom governo e a autonomia das cidades italianas em relação aos poderes externos é muito presente na representação pictórica. É como se fosse possível ler o afresco. É como se Skinner estivesse usando um método de texto para interpretar uma imagem, porque a ideia é que a imagem pode ser vista como uma espécie de discurso. E ela tem um elemento que a retórica ajuda a entender. A retórica é o discurso por excelência dos estudos humanistas, ao ponto de podermos falar que o discurso da teoria política, pelo menos até o século XVII, é um discurso retórico, e as imagens são criadas por meio da retórica.
Skinner menciona que os textos de “Visões da Política” que haviam sido publicados antes, como artigos em periódicos ou contribuições em obras coletivas, contam com adaptações e ajustes. Que mudanças foram essas?
EO: O décimo terceiro capítulo dessa edição brasileira, chamado “Do Estado dos Príncipes à Pessoa do Estado”, é um texto originalmente de 1987. Em 2002, para a primeira edição de “Visões da Política”, Skinner ampliou o texto e introduziu uma série de posições que ele não tinha contemplado quando escreveu a versão original. Entre essas posições, estavam algumas críticas que lançaram a ele, apontando que havia ignorado algum aspecto do tema em questão. Muitas vezes ele mantém sua posição e responde aos críticos. Em outros casos, muda sua perspectiva e até alguns conceitos. Ele incorpora algumas críticas, reitera as suas posições e ao mesmo tempo assinala o caminho que vai seguir dali por diante. Isso é interessante porque dá para ver uma continuidade das preocupações dele a partir dali. Nesse sentido, acho que Skinner é um autor muito coerente, apesar de incorporar algumas críticas, não porque se mantém rígido, mas porque consegue ver diferentes perspectivas do mesmo problema. Ele tem essa flexibilidade intelectual.