Com livro na nona edição, autor vê solução para problemas atuais relacionados a indígenas

Autor de “Índios do Brasil” conta que povos originários podem dar lições sobre temas como convivência pacífica, produção sustentável e sentido da vida

Em Edusp

Por Divulgação

Nos seus 85 anos, completados em abril de 2023, o antropólogo Julio Cezar Melatti viu seu livro “Índios do Brasil”, lançado em 1970, ser editado nove vezes em português e uma em espanhol. A recente reimpressão lançada pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) é fruto de pesquisas de campo feitas desde o início dos anos 1960 com populações indígenas, as quais o autor considera como fontes de respostas para outros grupos humanos sobre temas que vão da produção sustentável ao sentido da vida.

Em entrevista, Melatti explica como o respeito à autonomia e a criação de áreas demarcadas evitou a extinção de muitos dos povos originários, ação que envolveu uma mudança de comportamento de governantes, pesquisadores e missionários. Para ele, a situação de calamidade vivida nos últimos meses pelos ianomâmis mostra o destino desastroso que estaria reservado ao meio ambiente e às populações indígenas caso a “mentalidade empresarial” tivesse sido aplicada na Amazônia desde o regime militar.

O livro foi reimpresso mais uma vez em português. No prefácio da última edição, da Edusp, o senhor lembrou que muitas pesquisas foram feitas depois do lançamento, em 1970. Por que o interesse na publicação continua?

Julio Cezar Melatti: Lançado em 1970 pela Coordenada – Editora de Brasília, o livro teve uma segunda edição com modificações como um anexo de fotos de grupos indígenas diversos. Houve reclamações por conta de recortes feitos para adaptá-las às páginas, então o anexo foi suprimido nas edições posteriores. A edição que teve o texto mais retrabalhado foi a de 2007, pela Edusp. O interesse pelo livro prossegue, mas é moderado. 

Considerando que o livro não foi escrito para cientistas sociais, mas visando a um público mais amplo, a procura é modesta. O interesse pelos indígenas é permanente e foi atendido por várias publicações anteriores a este livro, inclusive um com o mesmo título, de Lima Figueiredo, com segunda edição de 1949. A apresentação e o prefácio são do marechal Cândido Mariano Rondon. Além disso, meu livro convive com outros sobre temas indígenas específicos também dirigidos a um público amplo.

O que as sociedades indígenas no Brasil podem nos mostrar?

JCM: As diferenças culturais, de língua e de organização social dão uma ideia da variedade de soluções que os grupos humanos podem encontrar diante dos desafios do meio ambiente, das relações amigáveis ou hostis com outros grupos, ou das perguntas sobre a própria existência. Tais diferenças ainda se tornam mais numerosas à medida que se passa de um continente para outro. Vale lembrar que cada sociedade indígena de hoje resulta de uma história de modificações pelas quais passou ao longo dos anos e dos séculos. As mais recentes são lembradas por seus integrantes mais velhos e as mais antigas podem ser vislumbradas pelo estudo de vestígios arqueológicos. Além disso, o estudo das línguas proporciona a oportunidade de mostrar que dois ou mais povos constituíram um único grupo no passado ou mantiveram muito contato uns com os outros. Mesmo duas pesquisas etnológicas separadas por algumas dezenas de anos podem apontar modificações na cultura e na organização social de um mesmo povo.

No livro “Índios do Brasil”, o senhor fala sobre a mentalidade empresarial segundo a qual o trabalho apenas para subsistência seria ilegítimo. Essa visão persiste? E quais são as consequências?

JCM: Essa mentalidade empresarial foi tirada de um texto de Roberto Cardoso de Oliveira, que distingue pelo menos quatro formas de mentalidade entre os não indígenas que opinam sobre os indígenas: a romântica, a estatística, a burocrática e a empresarial. A última persiste, como também a primeira. O ponto de vista empresarial se manifesta sobretudo entre pessoas cujas fazendas e empresas se localizam junto a alguma terra indígena e que aspiram ocupá-la para explorar madeira, fazer pastos para o gado, extrair minerais, plantar soja. O argumento delas é que a terra produziria muito mais, empregaria mais trabalhadores, pagaria impostos ao governo. Porém, esquecem o respeito aos direitos indígenas e à conservação do meio ambiente, usado de modo menos agressivo pelas atividades dessas populações.

Como enxerga as demarcações de terras indígenas e as iniciativas governamentais de liberar as áreas para mineração e outras atividades nos últimos anos?

JCM: A resposta pode ser a situação dos ianomâmis, que estão passando fome, com grande número de mortes entre as crianças, sem cuidados médicos, com os rios poluídos por mercúrio – rios, aliás, que correm para o rio Negro, que desemboca no rio Amazonas. O agravante nesse caso foi que nenhuma modificação na lei liberou a área indígena para a mineração. A invasão se deu pelo relaxamento intencional na fiscalização e na vigilância, dadas a diminuição de funcionários, as mudanças de atribuições e a troca de chefias nos órgãos governamentais promovidas por um governo que não escondia a aspiração ditatorial.

Como foram as pesquisas nos anos 1970 que culminaram com o livro? A situação atual dos povos indígenas no país é muito diferente em relação àqueles anos ou a sociedade tem hoje mais conhecimento sobre essas culturas e esses povos?

JCM: Minha primeira experiência em pesquisa de campo foi acompanhar, como auxiliar, a pesquisa de Roberto DaMatta junto ao povo gavião, no Pará. Eu estava cumprindo uma exigência do curso de especialização em antropologia cultural oferecido pelos professores Luís de Castro Faria e Roberto Cardoso de Oliveira, no Museu Nacional. O curso durou doze meses, entre 1961 e 1962. Comecei então minha própria pesquisa sobre os craôs, indígenas timbiras como os gaviões, como parte de dois projetos: um de Roberto Cardoso de Oliveira sobre áreas de fricção interétnica e outro de David Maybury-Lewis sobre organização social, que era parte de um convênio entre o Museu Nacional e a Universidade Harvard. De 1962 a 1971 fiz seis períodos de campo entre os craôs. Com o que aprendi no curso, nas pesquisas de campo e em leituras adicionais, escrevi “Índios do Brasil”, a tese de doutorado defendida na USP sobre o sistema social craô e dois pequenos livros sobre contato interétnico – “Índios e Criadores” e “O Messianismo Craô” –, tudo de 1967 a 1972. A partir da segunda metade dos anos 1960 se iniciam várias mudanças. Nas universidades, a docência passa a se combinar com a pesquisa e são criados cursos de mestrado e doutorado em antropologia, o que aumenta significativamente as dissertações e teses sobre grupos indígenas. Além disso, mais recentemente, as universidades criaram cotas para a matrícula de alunos indígenas, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Eu mesmo já participei de duas bancas de exame, uma de mestrado e outra de doutorado, ambas de antropologia e com candidatas mulheres (indígenas). Outra mudança ocorreu depois de um simpósio sobre a situação dos indígenas da América do Sul, em Barbados, com a participação de antropólogos e missionários em 1971. Foi elaborada a Declaração de Barbados, na qual se critica o comportamento dos antropólogos, preocupados apenas com o lado científico das pesquisas, sem atenção para a situação dos grupos indígenas que estudam e que são sujeitos a todo tipo de arbitrariedade e ao regime imposto pelos Estados, sem poder de decisão. O texto critica também o modo como os missionários impõem a religião. Os poucos antropólogos brasileiros que participaram da reunião não assinaram o documento por medo de represálias aplicadas pelo regime autoritário de então. Somente Darcy Ribeiro, que vivia no exílio, o fez. Mesmo assim, antropólogos brasileiros começaram a elaboração e realização de projetos referentes a saúde, alfabetização, demarcação, criação de terras e estímulo aos indígenas para que conquistassem o modo de viver. Também os missionários, sobretudo os católicos, mudaram de comportamento. Foi nesse momento que criaram o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). E também foi nessa época que a população de muitos grupos indígenas começou a se recuperar e a crescer. Havia grupos tão reduzidos e tão desequilibrados quanto a sexo e idade que os próprios pesquisadores admitiam o risco de extinção. Os craôs eram pouco mais de 500 na minha primeira visita, praticamente o mesmo número que o frei Rafael de Taggia levantou em meados do século XIX. No entanto, em 2014 alcançaram 2.992 pessoas, segundo o Instituto Socioambiental (ISA), que transcreve dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi) da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Certamente, esse crescimento se deve tanto à atenção de projetos de antropólogos e missionários como a um melhor atendimento proporcionado pelo governo.

Há algo mais que gostaria de falar e que não foi perguntado?

JCM: É difícil adivinhar o futuro. Terá o Congresso uma expressiva bancada para defender os direitos indígenas ou, pelo contrário, demolirá tudo aquilo que foi conquistado? O crescimento da população indígena contribuirá para a diminuição da caça nas terras demarcadas ou passarão a estimular a criação de aves, bovinos e ovinos? No Alto Rio Negro, já existe a criação experimental de peixes oriundos da própria região, conforme o livro “Laboratório na Floresta” (2014), de Milena Estorniolo. Quanto ao futuro do livro “Índios do Brasil”, esta edição será a última, considerando os 85 anos do autor. Lamento não ter acrescentado um capítulo sobre a mulher indígena, focando tanto a vida tradicional das aldeias como a presença dela no mundo dos brancos, agora que já está ocupando cargos no novo governo.

 

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