Do jornalismo ao ativismo político, antologia revela as múltiplas faces da obra de Patrícia Galvão, a Pagu

“Palavras em Rebeldia” mostra a importância de Pagu, que passou de escritora pouco conhecida a homenageada da FLIP, na história do modernismo e nos dias de hoje

Em Edusp

Por Divulgação

O interesse do professor Kenneth David Jackson, da Universidade Yale, nas publicações de Pagu começou por acaso. Já estudioso de Oswald de Andrade, pouco sabia sobre Patrícia Galvão até que uma nota de rodapé o levou ao romance “Parque Industrial” (1933). Interessado no livro, Jackson pediu a um de seus colegas que fizesse uma cópia do que veio a descobrir ser o único exemplar do romance no Brasil, na época localizado na Biblioteca Mário de Andrade.

Hoje um dos grandes estudiosos da obra de Pagu, Kenneth David Jackson lançou neste mês de novembro o livro “Palavras em Rebeldia”, pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), no qual catalogou textos das diversas fases e faces de Pagu. Além de sua produção jornalística, documentos dos inúmeros processos movidos contra ela dão uma perspectiva de sua vivência política. A antologia publicada pela Edusp se debruça sobre a vida e a obra de Patrícia Galvão e revela sua relevância para o jornalismo e a literatura brasileira. Vale destacar que Jackson está por lançar mais quatro livros com os textos completos da escritora.

Entre tantos nomes importantes na literatura e história política brasileira, o que na vida e obra de Pagu despertou o seu interesse e o motivou a escrever esta e outras obras sobre a autora?
Kenneth Jackson: A história é um pouco longa. No início dos anos 1970, eu estava fazendo uma pesquisa no Brasil no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, com o [Antonio] Candido, e escrevi uma tese sobre Oswald de Andrade. Através dos estudos de Oswald eu cheguei à Pagu. Muito depois, quando eu já era professor, vi o título “Parque Industrial” numa nota de rodapé em um livro de história da literatura brasileira. Então pedi a um colega que estava em São Paulo na época, o Randal Johnson, estudioso do cinema brasileiro, que me enviasse. Ele fez uma cópia do exemplar que está na Biblioteca Mário de Andrade, e recentemente fiquei sabendo que é o único exemplar disponível no Brasil dessa obra. Tivemos que esperar bastante, mas finalmente esse título foi incluído para tradução numa série de romances de mulheres da Universidade de Nebraska. Eu e minha esposa, Elizabeth, o traduzimos para o inglês e foi publicado em 1993. Então, passou pela Universidade do Texas, onde eu era professor, um jornalista brasileiro que publicou uma coluna no “Jornal do Brasil” sobre Pagu. Já nos anos 1990, em Florianópolis, havia um aluno de pós chamado Ademir Demarchi – na época ele foi meu assistente – que fez cópias em um arquivo da “Tribuna de Santos” de diversas colunas de Pagu. Uma coisa estava levando a outra e eu fiquei interessado pela obra jornalística dela. Ao longo dos anos procurei saber das outras publicações de jornalismo que ela produziu. Encontrei a “Fanfulla”, o “Diário de São Paulo”, encontrei várias outras fontes. E, nas sucessivas viagens ao Brasil, fui visitando os arquivos para juntar microfilmes. Então pedi a vários assistentes, tanto na Universidade do Texas quanto em Yale, que datilografassem o material e ajudassem a preparar um manuscrito sobre o jornalismo de Pagu. Na última etapa, eu dividi o trabalho em quatro volumes: o primeiro sobre Pagu e política; o segundo sobre arte e literatura; o terceiro sobre teatro; no quarto volume, uma antologia de literatura estrangeira. São 90 autores que ela escolhe, apresenta e traduz nessa antologia, que saiu no “Diário de São Paulo” em 1946 e 1947. É uma quantidade enorme de material.

Em seu livro é mencionado que Pagu ficou mais conhecida quando “Parque Industrial” foi republicado em 1981; agora ela é homenageada na FLIP. A que você atribui o atraso no reconhecimento da relevância de suas obras?
KJ: Existem vários pontos de vista sobre isso. Quando comecei a estudar Oswald de Andrade, em 1970, havia pouquíssima coisa sobre ele. Havia alguns artigos do [Antonio] Candido, do Haroldo de Campos e algumas coisas históricas, mas ele ainda não era aquele nome do modernismo. O próprio modernismo não tinha recebido a atenção crítica que receberia mais tarde, com o maior desenvolvimento das faculdades nos anos 1980 e 1990. Então, dessa perspectiva, Pagu recebeu menos atenção do que alguns dos outros, mas estavam todos recebendo pouca atenção. Assim, não é surpreendente que ela tenha sido mais ou menos esquecida, como o próprio Oswald, nos anos 1940 e 1950. No fim da vida, ele havia sido quase completamente esquecido, foi recuperado depois pelo Haroldo de Campos, pelo Candido e por uma onda de análises críticas, incluindo a minha tese. Voltando à Pagu, ela de fato recebeu pouca atenção, e o romance “Parque Industrial” conta com aquelas resenhas do Carlos Drummond de Andrade e do Otávio de Faria que são muito interessantes e mostram que ela era conhecida. Isso era interessante porque ela sempre foi uma figura singular. Não se esperaria que uma jovem paulistana dos anos 1920, vinda da Escola Normal, virasse um grande nome do modernismo brasileiro. Então, descobrimos depois que ela fez aulas com Mário de Andrade, estudou pintura ou desenho com Tarsila do Amaral quando tinha no máximo 18 anos e se envolveu com Oswald aos 19. A falta de atenção em relação a Pagu não significa que não tenha sido bastante conhecida por todo o grupo modernista. Agora eu acho que é mais que uma satisfação que “Parque Industrial” seja muito aceito e tenha entrado na lista de romances importantes do modernismo.

Uma particularidade de seu livro é a inclusão de processos policiais. Como se deu a ideia de colocar os processos pelos quais Pagu passou no livro e como conseguiu acesso a esses documentos?
KJ: Achei isso importante para mostrar o que ela passou no final dos anos 1930, nas mãos da ideologia Vargas e do Tribunal de Segurança Nacional. Eu recebi esse material por coincidência. Estive no Rio de Janeiro e conheci um historiador brasilianista chamado [Stanley] Hilton, que estuda a política da Era Vargas. Ele estava fazendo pesquisa no arquivo, tinha encontrado pastas com coisas da Pagu e me ofereceu o material. Então achei várias coisas interessantes, não só a burocracia do processo, como o fato de ela ter um mimeógrafo, entre outras coisas. Havia alguém que conhecia a Pagu muito bem, a condenando em certo sentido e assinando com as iniciais “R.R.”. Pensei: quem seria esse R.R.? E disso ainda não tenho certeza. Mas havia um francês, o qual, inclusive, ela menciona na obra jornalística, cujo nome tem dois erres e que era ligado ao serviço de investigação francesa em São Paulo. Isso significa que ela estava sendo vigiada por esses serviços. Após a condenação, ela mudou totalmente, fisicamente, em termos do seu interesse pela psicanálise, pela filosofia, pelo existencialismo. Esses escritos prisionais são totalmente diferentes, muito mais filosóficos, poéticos, muita coisa ainda por analisar que só saiu recentemente. Ela fala coisas realmente fascinantes naquele diário, dizendo que não há nada que possa tirar dela o que ela é. Que ela é “maior do que Deus”, que ela sempre precisa atuar 100% em tudo que pretende fazer. Enfim, eu preciso ler com mais cuidado, mas dá uma visão muito interessante da Pagu. Esses documentos mostram os mecanismos por trás do regime Vargas, a necessidade de prender a Pagu, depois o processo interno dela de evolução até 1940, quando ela sai da prisão e se junta a Geraldo Ferraz, vai escrever uma revista e viver o resto da vida em Santos.

Você mencionou o fato de que Pagu tem uma obra muito extensa. Como fez a seleção do que entra neste livro?
KJ: Olha, eu fiz porque prometeram que a obra jornalística completa vai sair logo. Eu queria uma representação de todas as fases, da primeira fase nos anos 1930, começando em “O Homem do Povo”, às vanguardas socialistas. Eu queria mostrar que a Pagu era crítica importante de muitos nomes do modernismo, ela cobriu quase todos os escritores importantes dos anos 1930. Depois, ela dedicou sua vida ao teatro, e tem um volume importante de jornalismo dedicado à tradução das representações em Santos. Ela continuava uma pessoa de vanguarda, porque traduziu o [Eugène] Ionesco, traduziu Octavio Paz. E ela continuava defendendo o modernismo também. Eu acho que, em parte, essa visão internacional literária dela da antologia dos grandes escritores mundiais tem um caráter modernista, porque coloca o Brasil no centro de uma produção mundial, ou pelo menos coloca o Brasil em diálogo com a produção dos grandes autores mundiais.

Uma das dificuldades apresentadas por Augusto de Campos foi a descoberta de alguns dos muitos pseudônimos de Pagu. Isso dificulta a descoberta dos trabalhos dela?
KJ: O Augusto tem uma lista dos nomes que ela usa: Patsy, Pt., entre vários outros. No jornalismo é mais fácil por artigos em sequência em colunas como A Noite Social ou Cor Local. Em A Noite Social, ela assina sempre como Ariel. Em Cor Local, assina principalmente como Pt. Mas é provável que existam outras colunas que não identifiquei porque têm outro nome. É um problema que existe com Machado de Assis também, pois ainda não identificaram todas as suas possíveis colunas. Uma curiosidade é que o nome que o Augusto descobriu, Solange Sohl, eu também encontrei no jornalismo. Ela fala de uma Solange em Paris, e ainda não sabemos se é ela mesma com o nome de Solange ou se realmente se trata daquela menina jovem em Paris. Não sabemos se essa realmente é a origem ou se foi invenção.

Existe algum consenso sobre o motivo de ela usar tantos nomes ou ainda é algo muito complicado de entender, talvez uma forma de tomar vozes diferentes para falar de assuntos diferentes?
KJ: Olha, é uma boa pergunta, porque naqueles quadrinhos que ela fez em “O Homem do Povo” a personagem principal chama “Cabeluda”, mais um nome. Então, acho provável que ela inventasse um nome para a criação dos quadrinhos, outro nome para os textos de denúncia social que publicou na coluna A Mulher do Povo, e assim, a cada sequência de artigos em colunas, ela deveria sentir a necessidade de outro nome. Pela multiplicidade, para marcar a diferença, não sei, há várias possibilidades, mas eu não encontrei nenhuma razão definitiva.

Pagu se tornou uma figura cercada de mitos e histórias exageradas. Quais dessas histórias sobre ela você já viu serem desmentidas?
KJ: Bem, tem esse problema de a chamarem de “degenerada sexual”, pois o Partido Comunista a descreveu assim quando ela foi expulsa. E uma das razões pelas quais ela saiu foi quererem que, no Rio dos anos 1930, ela se prostituísse para obter informações de determinada fonte. Ela ficou ofendida, ofendidíssima. E também parece que o chefe dos comunistas queria aproveitar-se dela e ela não gostou nada disso. Então, esse é um dos mitos sobre sua sexualidade. Ela tinha tantos outros interesses, mas, claro, era uma jovem muito bonita e deve ter atraído muita atenção. Existe também aquela história de que ela entrevistou Freud, o que não é possível, e de que ela trouxe a soja de volta ao Brasil. Eu fiz uma pesquisa e descobri que já havia grandes plantações de soja nos anos 1920. Sabemos muito pouco sobre sua viagem ao redor do mundo, mas parece que ela realmente assistiu à coroação de um imperador, na Mongólia, embora não haja confirmação. Parece, lendo com atenção o livro “Pagu no Metrô”, da Adriana Armony, que ela deixou três manuscritos em Paris: um romance chamado “Água”, um diário de viagens e mais um. Mas quem sabe se eles foram realmente perdidos ou se estão no arquivo de outro colecionador? Seria fundamental algum relato dessa viagem ao redor do mundo, só temos detalhes que ela menciona na obra jornalística, como quando ela conhece uma esfomeada nas ruas de Paris e se decepciona. Mas eu acho que a decepção sexual e erótica era muito grande também. Os ideais do partido, que acabam nas mãos de uma elite burocrática que controla o proletariado, baseiam a decepção. Agora, quanto ao feminismo, Pagu também em “Parque Industrial” critica as falsas feministas de São Paulo. Ricas, cuidando de suas unhas e se queixando de “empregadinhas”. Se ela foi feminista, foi de uma forma bem particular e exigente. Bem crítica, não foi um feminismo clássico. Mas ela realmente é singular, o que ajuda na criação de mitos em torno dessa figura múltipla.

O que você acredita que podemos aprender hoje ao analisar a vida e a obra de Pagu?
KJ: Eu acho importante enfatizar que a Pagu era intelectual, foi uma das grandes cabeças do Brasil no período. Analista, observadora, crítica, mantendo-se independente. Ela acreditava muito na educação, no valor da leitura para todos e não só para os intelectuais. Achava que com isso as pessoas reaqueceriam a sua vida e entenderiam muito mais as coisas. Através da leitura. Nessas traduções todas daquela antologia da leitura mundial, ela fez antes o que os concretistas fariam depois ao traduzir os grandes autores de vanguarda para os brasileiros, senão o Brasil não teria acesso a esses textos. Ela queria trazer a grande literatura para o Brasil para a formação de uma visão global. Eu acho que a Pagu era bem brasileira nesse sentido, ela queria que os brasileiros fossem muito bem-informados, fossem leitores, fossem esclarecidos. E no jornalismo ela mostra uma grande simpatia pelo povo, pelo proletariado, e também tem grandes expectativas e esperanças. Em sua crítica final, em que defende o modernismo em letras maiúsculas: “SÓ UMA OUTRA REVOLUÇÃO ARTÍSTICA PODE SUBSTITUIR NA HISTÓRIA E NA EVOLUÇÃO DA NOSSA SENSIBILIDADE E DA NOSSA INTELIGÊNCIA A REVOLUÇÃO DE 22”, ela revela que acredita na modernização da vanguarda brasileira e valoriza e critica os grandes escritores e artistas. Ela é uma participante ativa. Então, é uma experiência pioneira em que ela vai incorporar uma visão crítica, e é isso que faz dela autora além de crítica intelectual. Diferente de um Sérgio Milliet, que passou quase toda a vida na Europa escrevendo sobre a vida lida, Pagu era participante. Ela viveu o modernismo e viveu o Estado Novo. E ganhou respeito, como demonstrou Otávio de Faria ao dizer que não concordava com nada que ela representava nem com o que pensava, mas que a respeitava por sempre ter sido fiel aos seus ideais. Ela possui uma produção jornalística enorme, como poderá ser visto nos quatro volumes a serem publicados, passou a vida escrevendo. Não só participando, mas fazendo quadrinhos, fazendo colunas, era uma comentadora de sua própria vida e do modernismo brasileiro. E eu acho que essa é uma lição para as pessoas de hoje também: ela acreditava em si mesma ao participar de tudo e comentar criticamente.

 

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