A história dos bancos brasileiros revela a relação entre cidadania e sistema financeiro

Longe de demonizações ou idealizações, “Brasil dos Bancos” permite um olhar realista sobre o papel estrutural dos bancos em uma sociedade capitalista

Em Edusp

Por Divulgação

Por que os bancos de Minas Gerais, nos anos 1970, eram os maiores bancos privados mesmo sediados em estado de economia mais frágil? A pergunta, que ainda não havia sido respondida por ninguém, incitou o professor de macroeconomia mineiro Fernando Nogueira da Costa a iniciar sua dissertação de mestrado, a qual desencadeou uma série de acontecimentos que o levaram a uma posição ativa e relevante na economia do país.

Pilares de nosso sistema financeiro, os bancos – e mais especificamente a sua história – raramente ganham posição de destaque nos estudos de economia. “Brasil dos Bancos” não só traça uma linha do tempo detalhada de nosso sistema financeiro como também prova que devemos entender o papel social que os bancos devem cumprir para que possamos nos aproveitar dos benefícios da cidadania financeira, enfatizando sua importância para alcançarmos a mobilidade social.

O autor se utilizou de sua experiência como vice-presidente da Caixa Econômica Federal, de seu aprendizado como diretor-executivo da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), de seus estudos, de suas aulas e de seu convívio com banqueiros para compor “Brasil dos Bancos”, eleito o melhor livro de economia no XVIII Prêmio Brasil de Economia, em 2012.

Abandonando a dualidade entre demonização e idealização, Fernando Nogueira da Costa nos convida a repensar o papel dos bancos na sociedade e o modo como interagimos com o sistema financeiro. Afinal, somos todos clientes de bancos.

Em seu livro você menciona que, tanto no Brasil quanto fora, a história bancária tem uma tendência a evoluir de forma que existam cada vez menos bancos. O que causa essa tendência?

Fernando Nogueira da Costa: Eu costumo responder a essa pergunta com outra pergunta ao interlocutor: qual banco você escolheu para guardar o seu dinheiro? Você trabalha feito condenado, tem que guardar dinheiro até a sua aposentadoria, fazer reserva para pagar cuidadores quando ficar mais velho. Os clientes escolhem um banco grande o suficiente para não quebrar. Se o banco quebra, o risco é levar a sua reserva financeira. Os clientes espontaneamente escolhem os bancos maiores, algum dos cinco grandes. Agora esse critério é irrelevante, com o surgimento de bancos digitais e fintechs. Estes são escolhidos porque são mais baratos, não cobram tarifa, e distribuem cartão de crédito a rodo. Vi uma estatística recente impressionante: 77% dos clientes bancários têm conta tanto em banco tradicional quanto em banco digital. Quando você pegava números de clientes antes, você somava esses cinco grandes e dava 90%. Havia uma concentração muito grande. Hoje, 77% têm conta nos dois bancos, tradicional e digital. Só no tradicional são 13%, e o que sobra são 10% só no digital. Neste normalmente os clientes são mais jovens e, portanto, com menos dinheiro. Então, esses 10% provavelmente têm baixa renda, são muito jovens e não têm essa noção de reserva ainda.

Entre 2003 e 2006, houve uma grande bancarização no Brasil, período em que você era vice-presidente da Caixa Econômica Federal. Qual a importância de ser um país bancarizado e o que possibilitou essa bancarização em massa?

FNC: Eu vou falar sem falsa modéstia. No fim do segundo mandato do governo Fernando Henrique, os neoliberais já estavam de olho na privatização dos bancos públicos federais, o próprio Fernando Henrique tirou isso de pauta porque sabia que a população brasileira não aceitaria. Nesse período, com essa ameaça, surge a reestruturação patrimonial das instituições financeiras públicas. Eu comecei, nessa época, a escrever artigos em defesa dos bancos públicos e mandar para a Folha de S.Paulo praticamente todo mês. Comecei a falar de um assunto que no Brasil era praticamente desconhecido e teve até um editorial que foi baseado em um artigo meu sobre microcrédito. Todos os sindicatos de bancos públicos federais começaram a me convidar para dar palestras e então fiquei muito conhecido. Veio a eleição de 2002; Lula ganhou e logo fui convidado a ser vice-presidente da Caixa. Desde o início eu defendia que naquele estágio da história bancária brasileira, no governo de um partido dos trabalhistas, era preciso garantir acesso popular aos bancos e ao crédito. Então, tudo que fazíamos seguia essa estratégia do conselho diretor. Eu mostrei para o Jorge Mattoso o que era microcrédito e nós fizemos uma estratégia para fazer contas simplificadas e bancarizar. A cada 1 milhão de contas que a gente acrescentava, o Lula ia pessoalmente à Caixa para comemorar. Nunca antes um presidente da República tinha ido à Caixa. E o Lula ia frequentemente, muito entusiasmado. Quando o número batia 1, 2, 3 milhões, ele ia. A gente bancarizou até morador de rua. Se a pessoa dormia na rua e era roubada, perdia o pouco que conseguia. Então, essas pessoas puderam ter cartão e guardar dinheiro no banco. Isso permitia acesso a alguma segurança. Eu tinha consciência da necessidade de um projeto estratégico mesmo; na época em que os chamava de “sem-conta”, existiam os sem-teto e os sem-conta. Quem era sem-conta não tinha acesso a bancos. Veja bem, no Plano Real a inflação da URV era de 50% ao mês, ou seja, a pessoa perdia metade do valor aquisitivo porque não tinha conta. Quem sofreu o ônus do Plano Real trinta anos depois? Isso não é algo muito comentado, mas teve um ônus social imenso que foi o povão que sofreu, aqueles que não tinham conta bancária. Então eu defendo até hoje que o povo tem que ter conta-corrente, tem que saber guardar dinheiro, tem que ter educação financeira.

O seu livro com frequência menciona o papel social dos bancos. Você poderia explicar qual seria esse papel?

FNC: O Fábio Barbosa, que virou presidente da Febraban, é um cara de muito prestígio. Em um discurso, ele fez uma síntese que até hoje eu ensino: banco tem três funções. A primeira é viabilizar o sistema de pagamentos. A segunda, a gestão do dinheiro, dos investimentos e reservas financeiras. E a terceira é financiar. Geralmente professor acadêmico fala em financiar e se esquece dessas duas outras funções fundamentais. Ter uma conta-corrente é uma conquista de cidadania financeira, permite acesso fácil a depósitos, poupança, depósitos a prazo etc. Hoje o acesso a depósito a prazo é fundamental, como reserva financeira. É crucial o acesso ao sistema de pagamento. O caso do Pix, por exemplo: hoje até o pedinte tem um Pix e até o ano que vem já deve aparecer o Pix por aproximação. Ou seja, a ideia é substituir o papel-moeda, que a moeda seja completamente digitalizada, o que é bom para o sistema bancário e bom para a segurança. É uma maneira de combate ao dinheiro sujo, à lavagem de dinheiro. Essa é uma tendência mundial. Hoje, a Previdência Social não dá conta das pessoas. Você nunca vai ganhar na aposentadoria o que você ganha trabalhando, vai cair o seu padrão de renda. Então, necessariamente, se quiser manter o padrão de vida, tem que buscar a educação financeira e fazer aplicações financeiras. Isso de maneira massificada, é o que eu defendo. Educação financeira tem que estar presente desde o ensino fundamental. Essa é a questão da gestão do dinheiro, a outra é financiar. As pessoas pensam que isso significa ter cartão de crédito; eu acho que, se a pessoa não tem educação financeira, o cartão de crédito deve ser quebrado, os juros são absurdos. Mas o financiamento habitacional é fundamental. Qual é o peso do gasto com habitação no orçamento familiar? Na camada de baixa renda, grosso modo, entre 30% e 40%. Quando deixam de pagar aluguel, esse dinheiro vai direto para os gastos correntes. Eu fiz várias entregas de chaves de casas, via pessoas emocionadas e choros, elas recebiam a chave da casa própria e começariam a ter dinheiro no bolso para a alimentação e para a educação dos filhos. Então, é fundamental para a mobilidade social o acesso à moradia, e isso depende de um financiamento concedido pela Caixa. Mas, algo que as pessoas esquecem e para o qual eu chamo a atenção é o seguinte: se você quiser entender o capitalismo, o segredo do negócio capitalista, você tem que entender de alavancagem financeira. Depois de estudar o assunto, foi caindo a ficha e fui entendendo os ciclos de alavancagem e desalavancagem financeira. Os ciclos econômicos são econômico-financeiros. Há o endividamento e depois o pagamento da dívida. O que é alavancagem financeira? Você imagina que tem o dinheiro para comprar um terreno; em dois anos você consegue vender o terreno por 25% a mais, tendo 25% de rentabilidade financeira. Mas você observa que, se comprasse uma casa por quatro vezes o valor desse terreno, venderia por um valor ainda mais caro. Você então faz um empréstimo para pegar o valor restante e consegue dar maior escala ao seu negócio e aumentar a rentabilidade. Se o lucro operacional for superior à despesa financeira, já valerá a pena fazer a alavancagem financeira. O segredo é trabalhar com recursos de terceiros porque, se eu aumento a escala, aumento também a rentabilidade. Um capitalista que nunca pega um empréstimo é um capitalista de uma economia sem dinamismo, rastejante. A economia com crédito é dinâmica, eu acho isso fundamental para a economia capitalista. A lógica do capitalismo não pode ser entendida apenas com teoria do valor-trabalho.

Ainda no tema do empréstimo, tem uma frase no livro que achei curiosa sobre como os bancos alegam que o depósito gera um empréstimo, quando na verdade o empréstimo é que geraria o depósito. Você também afirma que sem o saque esse valor vai se multiplicando. Com cada vez menos uso do papel-moeda, como esse mecanismo de multiplicação é controlado?

FNC: Esse é um conceito extremamente importante, o multiplicador monetário, e é fundamental para entender o capitalismo financeiro. O que o banco faz? Tem um acordo chamado Acordo de Basileia que diz que o banco no Brasil pode alavancar até nove vezes. Qual é o segredo do negócio? O banco tem um capital que é menor que os seus ativos, ele dá suporte e gasta esses ativos através dos recursos de terceiros. Ele soma recursos próprios e recursos de terceiros, com isso ele compra títulos de dívida pública, outros títulos, e dá empréstimos; grosso modo, é isso. Mas como gerar mais depósitos? Você faz um empréstimo, digamos, para comprar um automóvel; o dinheiro entra na sua conta e, ao passar esse dinheiro para outra pessoa, você cria um depósito na conta do vendedor. E assim por diante, todo empréstimo vai gerando sucessivos depósitos. Essa relação entre os meios de pagamento e a base monetária é o chamado “multiplicador monetário”. Para que esse valor não se estenda ao infinito, o que o Banco Central faz? Ele exige reservas compulsórias. Se o dinheiro multiplica ao infinito, cria-se uma pressão inflacionária, a demanda monetizada acima da oferta agregada de bens e serviços cria o que chamamos de “inflação verdadeira”. Então, os bancos dão empréstimos, captam depósitos, mas do depósito captado sempre vai ter uma parcela correspondente a reservas compulsórias. Além disso, que outro mecanismo que evita um modificador de 100% daria total poder ao sistema bancário? A retirada de papel-moeda. Essa multiplicação acontece em depósitos à vista, não é contábil, registrada no banco. Quando o cliente retira o papel-moeda, esse multiplicador não atua. E é aí que entra o problema que você levantou: a tendência é que toda moeda seja digital, então essa forma de escape do multiplicador através do papel-moeda desaparece. Se o Banco Central não exigir reserva compulsória, isso pode virar um problema: o dinheiro será inteiramente digital e não escapará desse efeito modificador. O Banco Central tem o papel-chave de efetuar esse controle para que o dinheiro não vá ao infinito.

O sistema bancário brasileiro é tecnologicamente avançado mesmo em comparação a países em posição econômica melhor do que a nossa, e, pelo que compreendi de seu livro, a inflação tem participação em nosso avanço tecnológico. Como isso acontece?

FNC: Uma excelente pergunta, é difícil falar o que veio antes. É realmente um fato que a inflação é histórica e estrutural no Brasil. Quando a inflação era maior, uma herança do regime militar, o Delfim Netto promoveu dois choques cambiais para incentivar as exportações e pagar a dívida externa. Com isso, a inflação, que já era alta, chegou a um valor inicial anual de 220%. Quem não tinha conta recebia o dinheiro e corria para o supermercado para comprar as coisas, porque o preço no fim do mês era muito maior do que no início do mês. Quem tinha conta aplicava em correção monetária e assim tinha a proteção da inflação, não podia deixar o dinheiro parado um dia sem receber juros. Isso criava uma demanda tecnológica para que o dinheiro pudesse girar mais rápido. Digamos que uma pessoa fosse fazer um negócio na Zona Franca de Manaus; é preciso lembrar que o pagamento antes era encaminhado por carta. Fundamentais para o sistema bancário brasileiro emergir foram as telecomunicações, que começaram com o telégrafo. Imagine como era no século XIX; como era feita a comunicação entre as praças? Nordeste, Norte, Sudeste, Sul, como o banco se comunicava quando não tinha rede? Hoje a gente estuda muito a ciência de rede. Não tinha nem rede de agências, nem rede de comunicação. Então, essa demanda tecnológica é fundamental para o negócio bancário, principalmente quando a inflação está corroendo o poder aquisitivo. O celular é uma coisa muito recente, o Pix é de 2020. Inovações tecnológicas desse tipo, que permitem que o dinheiro chegue rápido, são uma novidade em termos históricos.

No capítulo homônimo do título do livro, você faz algumas conjecturas sobre o futuro do país. Você ainda vê o Brasil com o mesmo otimismo? Como você vê nosso futuro econômico hoje?

FNC: Eu estava muito esperançoso. No contexto em que eu estava vivendo, o Brasil tinha acabado de ganhar o chamado “grau de investimento”, era a bola da vez. Infelizmente, por razões totalmente alheias ao Brasil, como a crise do subprime norte-americano, houve uma grande crise financeira com risco sistêmico mundial. Os países do Brics até se saíram melhor durante a crise. O Brasil passou por uma minidepressão em 2009, mas em 2010 já cresceu 7,5%. O Lula facilmente fez uma sucessora, o Partido dos Trabalhadores ganhou quatro eleições seguidas. E eu tinha participado diretamente e conseguido meu objetivo de garantir o acesso popular a banco e a crédito. Então, naquela ocasião eu estava otimista quanto ao futuro brasileiro e via uma possibilidade de mobilidade social. O Brasil pode virar um país rico e ter mobilidade social implementando o que tentamos implementar naquele período: crédito imobiliário massivo. A estratégia no Brasil era o financiamento habitacional e transformar favelas em bairros populares. A definição de favela é a construção por conta própria, sem a presença do Estado, e aí não há prefeitura, segurança, nada. Na época, começaram a implementar essa política, vimos o teleférico ser construído na Favela da Maré, no Rio de Janeiro. Isso traria uma sucessão de conquistas de cidadania, de direitos. E eu via a possibilidade de os bancos serem atuantes nesse sentido da mobilidade social. Financiamento habitacional e acesso popular a meios de pagamento; a meta é a cidadania financeira. Não à toa, quando criei meu blog dei a ele o nome de Cidadania e Cultura. Eu não vejo o banco com preconceito. O sistema financeiro, costumo dizer, somos todos nós. Todos nós somos clientes de bancos. O setor financeiro e o setor produtivo constituem o sistema financeiro. É um direito à cidadania, todo cidadão deve participar ativamente dos benefícios de um sistema financeiro.

 

 

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