Autora explora a pluralidade do romantismo brasileiro em dois livros
Entrevistada pela Edusp, Cilaine Alves Cunha analisa a obra de seis autores românticos que marcaram a literatura do Brasil
Em Edusp
Por Divulgação
Ao longo de sua carreira acadêmica, a professora de literatura brasileira da USP Cilaine Alves Cunha estudou diversos autores do romantismo brasileiro e a vasta pluralidade desse movimento artístico. Além de obras nacionalistas, idealistas e sentimentais, mais comumente associadas à produção romântica, houve muitos poetas que adotaram a ironia e a sátira para criticar as convenções morais e artísticas de sua época.
Essa variedade dentro do romantismo embasou a escrita, pela professora, de dois livros recentemente publicados pela Edusp: “Fragmentos de Humor: Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Manuel Antônio de Almeida”, que explora a faceta humorística das críticas elaboradas por poetas românticos, e “Estranhezas do Século Romântico: Gonçalves Dias, Sousândrade, Gonçalves de Magalhães”, focado nas contradições de obras sobre a monarquia escravocrata brasileira no século XIX.
Em entrevista para a Edusp, a estudiosa destaca como os poetas do romantismo brasileiro estiveram em constante luta contra valores morais e hierárquicos rígidos, às vezes empregando recursos como a autossátira e a autoironia. “Eu gostaria de estimular o interesse das pessoas pelo romantismo mostrando que ele não é só tristeza e melancolia”, diz Cilaine. “Ele é muito maior que isso e muito mais interessante.”
Como foi a elaboração de “Estranhezas do Século Romântico” e “Fragmentos de Humor”?
Cilaine Alves Cunha: É uma pesquisa na qual venho trabalhando desde o fim do meu doutorado. Eu já havia desenvolvido a hipótese de que o romantismo no Brasil é heterogêneo e muito contraditório, e precisava delimitar quais tipos de romantismo eram esses. Fui desenvolvendo os dois livros ao mesmo tempo, inclusive com os alunos em sala de aula, aos quais devo agradecer bastante. Foi um grande prazer poder discutir todos esses assuntos com eles.
Em sua carreira acadêmica, quando você começou a se concentrar no romantismo brasileiro?
CAC: No final da minha graduação. O romantismo é o movimento da juventude, da liberdade, da rebeldia e da luta contra as convenções morais e sociais. Eu me encantei com Álvares de Azevedo, com o sentimento trágico, o senso de liberdade muito intenso e a grande paixão pela arte presentes na obra dele. Por isso, fiz meu trabalho de conclusão de curso sobre ele. Um de seus poemas, “Lembrança de Morrer”, é a expressão desse desejo ardente de viver exclusivamente dedicado à produção e à fruição da obra de arte. É uma ideia de que é possível estetizar a vida, levá-la como um jogo artístico e dramático. Depois, continuei estudando Álvares de Azevedo, desenvolvendo um projeto sobre as antinomias, sobre o que ele chamou de binomia. São as contradições que atravessam sua obra: ora um eu lírico nacionalista e sentimental, ora uma persona satírica rindo de si mesma. O crítico literário Antonio Candido ressalta que há poemas simetricamente opostos uns aos outros na obra de Azevedo. Eu vim desenvolvendo os princípios estéticos nos quais ele se apoia para construir esse culto, vamos dizer assim, às antinomias e às contradições. No mestrado e depois no doutorado, já ampliei um pouco o foco no romantismo, incluindo Gonçalves Dias.
Como você definiria o romantismo de forma a incluir as manifestações sentimentais e as satíricas?
CAC: Costumo dizer que não há nada mais romântico do que rir dos seus próprios idealismos e ilusões. Os românticos estão em luta contra as convenções morais e os princípios objetivos da arte, essa noção de que a arte possui regras claras. Isso passa também pela ideia de que não interessa o que o artista pensa, sofre ou sente. O importante é que ele imite os preceitos retóricos e poéticos e os grandes modelos da tradição: se você vai criar uma epopeia, você tem que se valer de Homero; se vai escrever sobre a lírica, precisa evocar Safo. Os românticos se posicionam contra isso. Para eles, a obra de arte deve expressar a reflexão profunda do gênio sobre o mundo. Kant já tinha dito que os poetas constroem os seus próprios princípios artísticos. É uma luta contra a convenção artística e da linguagem. Há uma desconfiança com a palavra e com as ideologias e um reconhecimento de que a linguagem também produz ideologia e princípios fixos de organização da vida social e cultural. No entanto, se você começa a construir uma obra de arte se baseando no rompimento com a convenção da linguagem e artística, você corre o risco de cair na ininteligibilidade: o seu leitor não vai entender o que você está falando. Além disso, você pode, à medida que cria a sua própria obra de arte, correr o risco de cair em outra ilusão e produzir outra ideologia. Vem daí a grande valorização da teoria romântica da ironia. Se você não quer ser muito idealista, ingênuo e se iludir, tem que criticar a si próprio e a própria poesia. Tem que produzir a autoironia. É por isso que Álvares de Azevedo tem um soneto em que ele ri de si mesmo por fazer o culto da virgem e do amor. No início da carreira, ele ainda era ingênuo, imitando Gonçalves Dias, tentando fazer cantigas de amor e cantigas de amigo. Daí a pouco vem outro Álvares de Azevedo, que começa a satirizar tudo isso que ele foi e a propor uma literatura do excesso, do desregramento sexual, da boêmia e da liberdade completa. Mas também é possível encontrar poemas nos quais ele diz que agora todo mundo é poeta e boêmio, todos estão se vulgarizando. Isto também é bem romântico: ser crítico de si mesmo para não recorrer à ideologia, para não produzir convenções morais e éticas.
Como você resumiria as semelhanças e as diferenças entre as manifestações do romantismo analisadas nos dois livros?
CAC: Nesses trabalhos, procurei em primeiro lugar a concepção de história que norteia a obra de cada poeta. Gonçalves Dias era muito católico, então, para ele, Deus impulsiona o fluxo da história no caminho da bondade, da justiça, da virtude e do aperfeiçoamento ético e moral. O outro vetor que para ele impulsiona o fluxo da história são as ações humanas, incluindo as condições tecnológicas e materiais. Só que, em uma prosa poética chamada “Meditação”, Dias observa que os seres humanos também são ambiciosos, gananciosos e tendem ao pecado. Isso teria desviado o curso da história divina e, no século XIX, esse desvio seria a escravização. Dias é um poeta monárquico, mas também abolicionista. No início ele apresenta um texto abolicionista muito contundente. Gonçalves de Magalhães também tem uma concepção divina da história, mas bastante nacionalista e afirmativa com relação à monarquia e à ordem social tal como ela estava posta naquele momento. Não se vê isso em Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães nem em Manuel Antônio de Almeida, porque eles são anti-iluministas e antirracionalistas. Azevedo sempre pensa que a história começa pela decadência, tem sempre uma previsão trágica acerca da história. Almeida é liberal, acredita no progresso e é abolicionista. Ele tem textos ferrenhamente antiescravocratas. Além disso, esses autores também estão rindo do romantismo adocicado e melodioso. Em “Memórias de um Sargento de Milícias”, o narrador fala que esse romantismo é “babão” e que, na verdade, o amor é determinado pela vida sexual. Azevedo tem um poema, “O Poeta Moribundo”, em que o eu lírico, à beira da morte, convida outros poetas a pegar suas tripas, usá-las como cordas de uma viola e cantar. No poema “O Nariz perante os Poetas”, Bernardo Guimarães afirma que o gênio não passa de um nariz empinado que está usando a arte como forma de ascensão social. E por aí vai.
Você pensou nos dois livros como obras complementares ou são obras sobre fenômenos específicos?
CAC: É possível ler os dois em separado. Em “Fragmentos de Humor”, mostro como cada poema pode estar dialogando com o romantismo que Alfredo Bosi chama de “oficial”, mais ligado ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e muito próximo também de dom Pedro II. É um romantismo mais patriótico e, ao mesmo tempo, muito sentimental. Bernardo Guimarães escreveu textos muito críticos à poesia de Gonçalves Dias, sobretudo aquela que ele produziu no final da vida, criticando inclusive essas convenções disseminadas nos poemas de Dias. Em “Estranhezas do Século Romântico”, é fundamental pensar que os autores fazem uma literatura mais séria e mais grave, são todos, de certa forma, utópicos e idealistas. Mas não deixa de ser uma literatura mais séria no sentido de que Sousândrade, que sempre foi radicalmente abolicionista e republicano, é muito idealista e não faz crítica a si próprio e à própria poesia. Há um ideal de americanidade segundo o qual os povos oprimidos na América do Sul se reuniriam contra o imperialismo e em favor da soberania das nações. Em “Fragmentos de Humor”, trato de outra literatura, que se pode chamar de literatura da dúvida. Esses autores não são utópicos nem têm idealismo político ou cultural. Álvares de Azevedo tem um poema chamado “A Tempestade” no qual o eu lírico, discriminado pelo povo, sobe numa montanha para ver Deus, mas o poema termina e Deus não chega. Não é uma sátira tradicional, que critica a ordem moral e social para apresentar outra virtude e edificar. É rir da miséria e das ilusões humanas sem pôr nada no lugar. Já que o ser humano não deu certo, o jeito é rir.
Como você fez a seleção dos três autores analisados em “Estranhezas do Século Romântico” e dos outros três em “Fragmentos de Humor”?
CAC: Muitos dizem que foi Gonçalves de Magalhães quem fundou o romantismo brasileiro, mas creio que não deu muito certo. Ou porque ele não era verdadeiramente romântico – ele é muito árcade –, ou porque não tinha muito talento. Isso ainda precisa ser pesquisado mais a fundo. É Gonçalves Dias quem consolida aquilo que eles estavam inventando naquele momento como uma “brasileira literatura”, incluindo os princípios do indianismo e a recuperação das formas líricas e poéticas da Idade Média. Em 1846, ele lança “Primeiros Cantos” e logo em seguida já é aclamado como o grande poeta nacional. E Dias é contemporâneo de Álvares de Azevedo. Um está escrevendo enquanto o outro está publicando. Não concordo muito com a divisão desse grupo em duas fases, como se fossem dois momentos distintos. Não são. A diferença de idade entre eles é pouca, eles estão escrevendo e publicando quase que ao mesmo tempo, e um está observando o outro, dialogando com o outro. Então, a seleção de autores levou em conta a necessidade de ver o diálogo entre eles. Além disso, são poetas admiráveis. Os romances de Bernardo Guimarães merecem ser revistos, porque ele é um autor afrodescendente, assim como Gonçalves Dias, e também abolicionista. Ele é o nosso grande satírico do século XIX. Na obra de Sousândrade, vi o aprofundamento dos princípios do experimentalismo formal já presentes em Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, mas muito radicalizados, numa busca tão absoluta da originalidade a ponto de não se importar de se tornar, em alguns momentos, quase incomunicável. E Guimarães, no romance, está criando uma vertente realista à maneira romântica, não à maneira da segunda metade do século XIX.
Essa pluralidade do romantismo no Brasil também se dá no romantismo de outros países?
CAC: Sim. No livro “A Educação pela Noite”, Antonio Candido diz que o romantismo é uma estética da multiplicação, porque, até então, se acreditava que todos os seres humanos possuíam uma natureza comum. Todos somos movidos pelas paixões, pelos medos e desejos, mas também podemos ser racionais. Então o filósofo Johann Gottlieb Fichte, baseado em Kant, questionou tudo isso. Ele afirmou que não temos uma natureza única, que nós nos formamos e nos constituímos à medida que vivemos nossas experiências. Segundo os filósofos franceses do século XVIII, nunca somos sequer iguais a nós mesmos, já que mudamos ao longo da vida. Johann Gottfried von Herder, considerado filósofo do nacionalismo naquele momento, diz que não existem valores universais válidos para todas as épocas. Cada nação, cada cultura e cada comunidade têm seus valores próprios. Por isso há uma valorização do dialogismo e da diversidade, pois seria um método para alcançar um conhecimento maior sobre um povo, uma cultura ou uma época. O uso da ironia vem em parte dessa ideia, e é por isso que o romântico vai contra a racionalidade e valoriza o que é irregular, o fragmento, o heterogêneo e a contradição. O pensamento é que os valores e princípios morais só serão legítimos se forem autodeterminados, ou por um povo, ou pelo indivíduo, no caso do culto do individualismo. É uma valorização da liberdade. Se eu não for livre para me autodeterminar com responsabilidade, inclusive assumindo as consequências pelo que fiz, então não há liberdade. Por isso, o romantismo procura o múltiplo. Tem a ver com a ideia de ruptura: eles estão propondo romper com a ordem social estabelecida. Essa heterogeneidade existia até em relação ao próprio poeta: Goethe, por exemplo, é altamente romântico em “Os Sofrimentos do Jovem Werther” e, logo em seguida, classicizante. A valorização da diversidade está inscrita no interior da própria teoria estética do romantismo. Em sua oposição ao classicismo francês, Herder chega a dizer que nem todos são obrigados a ser racionais e iluministas, mesmo porque a racionalidade pode desembocar em despotismo.
Como o romantismo se insere na construção de uma identidade brasileira?
CAC: O sentimento de pertencimento e a consciência de nação provavelmente surgem no Brasil no final do século XIX, mas de modo muito diferente em comparação com os modernistas, pensando no folclore e na cultura popular. No século XIX era uma ideia elitista, a de criar a identidade nacional ligada aos princípios do nacionalismo monárquico escravocrata. Naquela época, a ideia de nação estava surgindo com a construção do Estado-nação brasileiro. Antes, as instituições do poder estavam distribuídas por diferentes regiões, na Europa e nas colônias. Após a Independência, fica aqui no Brasil um herdeiro da tradição portuguesa. Então, para se legitimar, é necessário, na óptica desses governos, fazer uma associação entre o território – o Estado-nação burocrático que está sendo construído – e os governantes que estão conduzindo a política. O princípio de identidade nacional surge para legitimar o poder então estabelecido, sendo encarnado no indígena. Este não é o indígena etnográfico, com seus costumes e modo de vida. Gonçalves Dias e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estavam projetando os princípios da nacionalidade do branco europeu sobre as culturas indígenas. Os indígenas eram ágrafos, respeitavam a tradição e a autoridade maior, tinham sentimento religioso e estético e, sobretudo, valorizavam a liberdade. Havia uma visão de que os indígenas eram todos um povo só, descendentes dos tupis. Em Sousândrade é diferente, porque ele viaja pela Amazônia e observa que não há uma comunidade indígena única. Sousândrade incorpora radicalmente o princípio de que há diversos indígenas aqui no Brasil, que fazem parte de inúmeros e diferentes povos, cada um com seu próprio modo de ser.
Você diria que os aspectos políticos e ideológicos ligados a esses autores são indissociáveis de suas obras?
CAC: As formas de interpretação da obra de arte são múltiplas. Se você quiser se aproximar mais da maneira como os autores pensam a literatura, pode se perguntar: a literatura é a nacionalidade? Depende do escritor e depende da época. Então, para alguns, a literatura é uma forma de o poeta investigar os mistérios insondáveis do mundo. Para outros, como foi até o século XVIII, a arte é pragmática. A obra de arte tem como função e finalidade ensinar e educar o leitor. Para Álvares de Azevedo, a arte é desinteressada e tem um fim nela mesma. A função da arte é ser arte, é ser o belo, é ser lúdica. Temos que pensar em qual é o método de análise da literatura. É o que depois foi chamado de teoria estética. Trata-se de um relativismo muito grande: agora não existem mais regras fixas. Precisamos compreender como o autor construiu a obra dele. Então, como eu vou pensar o que é a binomia em Álvares de Azevedo? Em Machado de Assis, que ironia é aquela? Qual é a relação do escritor com os narradores? Segundo quais princípios da arte esses autores construíram suas obras? Isso permite a análise de uma forma, digamos assim, acadêmica. Mas é possível fruir a arte de diversas maneiras. É bom porque na arte não há uma ideia precisa e científica, uma definição determinando que a arte é isso e que Álvares de Azevedo disse aquilo. Claro, posso dizer que, considerando os princípios a que o autor recorre, estou um pouco mais perto, mas também é possível ler de outra maneira. Um risco da interpretação é ficar só no conteúdo, no que o autor disse. E a forma? Como ele disse? A forma é indissociável do conteúdo, então a interpretação é sempre um risco que se procura evitar, mas é praticamente impossível.